Imagine
ser uma jovem de 20 anos, ingressante em um dos cursos de Direito mais
tradicionais do país, marcado por uma aura de poder e tradição. Quais as
sensações proporcionadas por este espaço?
Lançado
no fim de março de 2019, o livro “Interações de gênero nas salas de aula da
Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto” tenta responder a questão.
Coordenado
pelo GPEIA (Grupo de Pesquisa e Estudo de Inclusão na Academia) da Universidade
de São Paulo, o trabalho trata da desigualdade de gênero na academia a partir
do conceito de “currículo oculto”.
O
que é “currículo oculto”
Em
1972, o psiquiatra americano Benson R. Snyder, então reitor do MIT (Instituto
de Tecnologia de Massachusetts), nos Estados Unidos, publicou o livro The
Hidden Curriculum, sobre a influência da cultura universitária na saúde mental
dos estudantes.
A
expressão “hidden curriculum” (currículo oculto, em português) foi cunhada pela
primeira vez anos antes: no livro Life in Classrooms, do pesquisador Philip
Wesley Jackson, professor da Universidade de Chicago, em 1968. Mas foi depois
do trabalho de Snyder que o conceito foi integrado a estudos na área de
psicologia e sociologia da educação.
Currículo
oculto é o conjunto de situações nos espaços educacionais que não se referem à
grade curricular dos cursos, mas o que acontece ao longo deles: o convívio com
os colegas de classe, as discussões em sala de aula, as relações com os
professores. Ou seja, tudo o que envolve uma sala de aula (além da aula
propriamente dita) faz parte do currículo oculto.
Diferentemente
de uma grade curricular estruturada e planejada, o currículo oculto se refere
ao que não é planejado, mas que acaba acontecendo no cotidiano e influencia a
formação dos estudantes – seja na escola primária, no colégio ou na
universidade.
O
contexto cultural e político, as expectativas, os padrões de comportamento e as
relações profissionais estão entre os fatores desse currículo oculto. Questões
como bullying, burnout e assédio também entram nesta conta, que pode tornar o
ambiente acadêmico tóxico.
O caso do Largo São Francisco
Na
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, conhecida como Largo São
Francisco, onde está localizada (no centro da capital paulista), o currículo
oculto envolve a identidade de gênero: a dinâmica da tradicional faculdade
(fundada em 1827, uma das mais antigas do país e historicamente frequentada
pelos filhos das elites econômicas) tende a privilegiar a participação de
alunos e silenciar a participação de alunas.
“Sentimos
que, nas aulas em que estávamos presentes, não éramos ouvidas ou, às vezes, o
que falávamos não tinha repercussão”, exemplificou Cecília Barreto de Almeida,
uma das coordenadoras do grupo, ao Jornal da USP.
Em
2015, alunas de graduação e pós-graduação procuraram a professora Sheila
Christina Neder Cerezetti, do Departamento de Direito Comercial da
universidade, para conversar e desenvolver um projeto sobre o assunto. “Existe
um problema de gênero na medida em que a mulher é invisibilizada, já que o
ensino é todo pautado na naturalização da figura masculina”, comentou
Cerezetti.
Ao
longo de três anos, o grupo desenvolveu uma pesquisa para analisar as relações
entre alunos e alunos, alunos e professores, professores e professores no
campus do Largo São Francisco. O grupo acompanhou aulas e registrou observações
etnográficas, entrevistou alunos e levantou dados da universidade.
Em
2018, dos 152 professores ativos nas universidades, 126 eram homens, por
exemplo. Entre 2012 e 2016, dos 2.377 alunos matriculados por semestre, cerca
de 60% são homens.
O
comportamento dos professores e professoras, a dinâmica junto aos outros alunos
(em grupos maiores ou menores em sala de aula) e a inclusão da temática de
gênero nos debates foram fatores importantes para a participação das
estudantes.
Coordenado
por Sheila Christina Neder Cerezetti, Cecília Barreto de Almeida, Izabella
Menezes Passos Barbosa, Lívia Gil Guimarães, Luciana de Oliveira Ramos e
Marília Rolemberg Lessa, o e-book está disponível para download gratuito na
Biblioteca Digital da Unesco (agência de educação, ciências e cultura das
Nações Unidas).
O Nexo destaca abaixo alguns
trechos.
5 trechos do livro
1. Cuncubinas ou golpistas
“Durante
as aulas o professor […] contrapõe a concubina à mulher legítima,
diferenciando-as pela apresentação na sociedade e a presença da fidelidade,
acrescentando que o homem casado ‘assume o risco, sabendo que é uma situação
ruim’. Em outro momento, traz esboço histórico da Lei das 12 Tábuas, que trazia
a figura do ‘pai de família’. Na segunda aula, continua dando exemplos
utilizando sempre figuras masculinas. Quando as figuras femininas aparecem é
sempre […] como golpistas” (registro de aula)
2.
Chega de fiu-fiu
“Logo
no início de uma aula de apresentação de seminários, quando um trio de alunas
subiu no palco para apresentar o seminário, várias pessoas assobiaram. As
estudantes ficaram constrangidas, dando risadas nervosas. A professora levantou
da primeira fileira, foi até o palco, pegou o microfone e disse, de forma muito
séria: ‘isso não é aceitável. Estamos numa época de auge no feminismo e vocês
ainda com fiu-fiu? Isso é uma clara manifestação de misoginia e está proibido
fazer misoginia aqui’ […]” (registro de aula)
3. Falar
“Deve-se
sustentar oralmente o conteúdo do trabalho, momento que, como vimos em algumas
leituras, costuma privilegiar os meninos e pessoas brancas. Nos trios, por
exemplo, em que uma pessoa não precisava apresentar, reparamos que as mulheres
e estudantes negros não eram as pessoas geralmente escolhidas para falar”
(registro de aula)
4.
Falar alto
“Parece
que para poder discutir com esse professor, eu também tenho que ser uma pessoa
meio agressiva. O que sempre vejo acontecer é que, por exemplo, nesse cantinho
central da sala, tem dois ou três meninos que gostam de falar alto e discutir
com ele, e parece que eu tenho que ser assim pra conseguir falar de pau a pau,
sabe? Você vê uma sintonia entre eles” (depoimento de aluna de 22 anos)
5. Pedir desculpas
“Tem
uma diferença brutal. Ainda quando as mulheres participam,elas sempre pedem
desculpa… Elas sempre acham que elas estão erradas… Elas sempre levantam uma
dúvida sobre o que elas estão falando” (depoimento de aluna de 29 anos)
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