domingo, 21 de abril de 2019

O "CURRÍCULO OCULTO" DAS UNIVERSIDADES BRASILEIRAS. Por Juliana Sayuri, no Nexo Jornal

Imagine ser uma jovem de 20 anos, ingressante em um dos cursos de Direito mais tradicionais do país, marcado por uma aura de poder e tradição. Quais as sensações proporcionadas por este espaço?

Lançado no fim de março de 2019, o livro “Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto” tenta responder a questão.

Coordenado pelo GPEIA (Grupo de Pesquisa e Estudo de Inclusão na Academia) da Universidade de São Paulo, o trabalho trata da desigualdade de gênero na academia a partir do conceito de “currículo oculto”.
O que é “currículo oculto”

Em 1972, o psiquiatra americano Benson R. Snyder, então reitor do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), nos Estados Unidos, publicou o livro The Hidden Curriculum, sobre a influência da cultura universitária na saúde mental dos estudantes.

A expressão “hidden curriculum” (currículo oculto, em português) foi cunhada pela primeira vez anos antes: no livro Life in Classrooms, do pesquisador Philip Wesley Jackson, professor da Universidade de Chicago, em 1968. Mas foi depois do trabalho de Snyder que o conceito foi integrado a estudos na área de psicologia e sociologia da educação.

Currículo oculto é o conjunto de situações nos espaços educacionais que não se referem à grade curricular dos cursos, mas o que acontece ao longo deles: o convívio com os colegas de classe, as discussões em sala de aula, as relações com os professores. Ou seja, tudo o que envolve uma sala de aula (além da aula propriamente dita) faz parte do currículo oculto.

Diferentemente de uma grade curricular estruturada e planejada, o currículo oculto se refere ao que não é planejado, mas que acaba acontecendo no cotidiano e influencia a formação dos estudantes – seja na escola primária, no colégio ou na universidade.

O contexto cultural e político, as expectativas, os padrões de comportamento e as relações profissionais estão entre os fatores desse currículo oculto. Questões como bullying, burnout e assédio também entram nesta conta, que pode tornar o ambiente acadêmico tóxico.

O caso do Largo São Francisco

Na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, conhecida como Largo São Francisco, onde está localizada (no centro da capital paulista), o currículo oculto envolve a identidade de gênero: a dinâmica da tradicional faculdade (fundada em 1827, uma das mais antigas do país e historicamente frequentada pelos filhos das elites econômicas) tende a privilegiar a participação de alunos e silenciar a participação de alunas.

“Sentimos que, nas aulas em que estávamos presentes, não éramos ouvidas ou, às vezes, o que falávamos não tinha repercussão”, exemplificou Cecília Barreto de Almeida, uma das coordenadoras do grupo, ao Jornal da USP.

Em 2015, alunas de graduação e pós-graduação procuraram a professora Sheila Christina Neder Cerezetti, do Departamento de Direito Comercial da universidade, para conversar e desenvolver um projeto sobre o assunto. “Existe um problema de gênero na medida em que a mulher é invisibilizada, já que o ensino é todo pautado na naturalização da figura masculina”, comentou Cerezetti.

Ao longo de três anos, o grupo desenvolveu uma pesquisa para analisar as relações entre alunos e alunos, alunos e professores, professores e professores no campus do Largo São Francisco. O grupo acompanhou aulas e registrou observações etnográficas, entrevistou alunos e levantou dados da universidade.

Em 2018, dos 152 professores ativos nas universidades, 126 eram homens, por exemplo. Entre 2012 e 2016, dos 2.377 alunos matriculados por semestre, cerca de 60% são homens.

O comportamento dos professores e professoras, a dinâmica junto aos outros alunos (em grupos maiores ou menores em sala de aula) e a inclusão da temática de gênero nos debates foram fatores importantes para a participação das estudantes.

Coordenado por Sheila Christina Neder Cerezetti, Cecília Barreto de Almeida, Izabella Menezes Passos Barbosa, Lívia Gil Guimarães, Luciana de Oliveira Ramos e Marília Rolemberg Lessa, o e-book está disponível para download gratuito na Biblioteca Digital da Unesco (agência de educação, ciências e cultura das Nações Unidas).

O Nexo destaca abaixo alguns trechos.
5 trechos do livro

    1. Cuncubinas ou golpistas

“Durante as aulas o professor […] contrapõe a concubina à mulher legítima, diferenciando-as pela apresentação na sociedade e a presença da fidelidade, acrescentando que o homem casado ‘assume o risco, sabendo que é uma situação ruim’. Em outro momento, traz esboço histórico da Lei das 12 Tábuas, que trazia a figura do ‘pai de família’. Na segunda aula, continua dando exemplos utilizando sempre figuras masculinas. Quando as figuras femininas aparecem é sempre […] como golpistas” (registro de aula)

    2. Chega de fiu-fiu

“Logo no início de uma aula de apresentação de seminários, quando um trio de alunas subiu no palco para apresentar o seminário, várias pessoas assobiaram. As estudantes ficaram constrangidas, dando risadas nervosas. A professora levantou da primeira fileira, foi até o palco, pegou o microfone e disse, de forma muito séria: ‘isso não é aceitável. Estamos numa época de auge no feminismo e vocês ainda com fiu-fiu? Isso é uma clara manifestação de misoginia e está proibido fazer misoginia aqui’ […]” (registro de aula)

    3. Falar

“Deve-se sustentar oralmente o conteúdo do trabalho, momento que, como vimos em algumas leituras, costuma privilegiar os meninos e pessoas brancas. Nos trios, por exemplo, em que uma pessoa não precisava apresentar, reparamos que as mulheres e estudantes negros não eram as pessoas geralmente escolhidas para falar” (registro de aula)

    4. Falar alto

“Parece que para poder discutir com esse professor, eu também tenho que ser uma pessoa meio agressiva. O que sempre vejo acontecer é que, por exemplo, nesse cantinho central da sala, tem dois ou três meninos que gostam de falar alto e discutir com ele, e parece que eu tenho que ser assim pra conseguir falar de pau a pau, sabe? Você vê uma sintonia entre eles” (depoimento de aluna de 22 anos)

    5. Pedir desculpas

“Tem uma diferença brutal. Ainda quando as mulheres participam,elas sempre pedem desculpa… Elas sempre acham que elas estão erradas… Elas sempre levantam uma dúvida sobre o que elas estão falando” (depoimento de aluna de 29 anos)




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