Twiteio,
logo existo. A "lava jato" como um novo Poder. Como Ku Klux Klan,
queimam-se bonecos dos ministros. E então?
1. Alterando Montesquieu?
Uma
PEC será enviada ao Parlamento, instituindo um novo poder: o Poder
Lavajatístico. As razões da “PEC” que “revoluciona” a velha e ultrapassada
teoria montesquieuiana são simples: a origem está no neoconstitucionalismo, no
realismo jurídico, no ativismo, no punitivismo, no moralismo, no olavismo
(veja-se o que Mourão e Santos Cruz dizem sobre isso!), na nova política (sic)
e em todos os “ismos” possíveis e imagináveis. Mais do que isso, trata-se de um
caldo político originário da pós-modernidade em que não há mais fatos, só há
interpretações. Narrativas. É o paradigma novo do Know-Nothing (Saber Nenhum),
como diria MacIntyre. “— Tenho um grupo de uats, logo sou”. “— Twitteio, logo
existo”. Ou “Só existo porque twitteio!” Os membros desse novo Poder são
vitalícios. “Enquanto houver bambu, vai flecha”: eis o lema inscrito na
bandeira que tremula na sede central do novo Poder.
Nessa
nova forma de poder, o Supremo Tribunal Federal não é necessário. É
dispensável. O STF atrapalha a boa intenção do novo Poder, como foi o caso do
julgamento da conexão com o eleitoral. Afinal, alguns “ministros” do Poder
Lavajatístico já retwittaram que o STF deverá ser apedrejado, caso decida que a
presunção da inocência significa, de fato... presunção da inocência.
2. #EmDefesaDoSTF
Por
isso, esta coluna de hoje é Em Defesa da Suprema Corte. Ou “#EmDefesaDoSTF”, em
tempos de críticas absolutamente irresponsáveis e de repristinação de práticas
“such as Ku Klux Klan”, como se pode ver neste vídeo de manifestação contra o
STF em Porto Alegre, com queima — sim, queima — dos onze bonecos dos ministros
da Suprema Corte. Começa assim: queima-se bonecos, depois cruzes, depois...
complete a frase.
Há
vários elementos objetivos que levam à reflexão acima. Vamos lá.
“A
Lava Jato vai se deixar usar por Bolsonaro?”, pergunta Celso Rocha de Barros na
Folha; mesma Folha em que Hélio Schwartsman diz não se poder negar “que muitas
das ações do pessoal da Lava Jato miraram objetivos políticos”. As preocupações
de ambos os autores são urgentes. Retomo aqui o que disse Celso Rocha:
Durante
a sessão do STF, os bolsonaristas, como sempre fazem, surfaram a onda de
indignação popular para transformá-la em ataque à democracia. Subiram a hashtag
#Umsoldadoeumcabo, referência ao discurso de Eduardo Bolsonaro defendendo o
fechamento do Supremo.
E
Rocha de Barros fecha a passagem com mais uma certeira pergunta: “Agora me
digam, membros da força-tarefa; me diga, Moro: eu devo ir a passeatas com esses
caras?”
3. A quem interessa uma crise
institucional?
Pois
bem. A questão que Rocha de Barros coloca é minha também: a quem interessa essa
sequência de crises? A quem interessa esculhambar com a Suprema Corte de um
país de 200 milhões de habitantes?
Ao
longo dos anos, venho denunciando muitas decisões equivocadas do Supremo. Aqui
neste espaço — foram tantas as minhas críticas que seria impossível reuni-las
todas aqui em links — e em livros (ver, por todos, este aqui). Critiquei
ministros com quem tenho boas relações, direcionei minha voz no debate público
na direção contrária a decisões com bastante popularidade, fui bastante duro
quando senti que tinha de ser. Sou, portanto, insuspeito nesse sentido. Sempre
procurei, humilde e lhanamente, representar uma parte daquele que penso ser o
papel da doutrina: o de vigiar os vigilantes.
4. Quem vigia o lavajatismo?
Mas
quem vigia aqueles que não querem deixar que os vigilantes vigiem? Quem vigia o
lavajatismo? Quem quer a lavajatização do Brasil? Faz sentido vazamentos
irresponsáveis? Faz sentido que um procurador compartilhe documentos recolhidos
em uma busca e apreensão? (ver aqui) Claro que faz sentido..., se me entendem a
ironia.
Como
disse, venho criticando o Supremo há anos. Críticas devem sempre ter duas
coisas: razões legítimas e limites. São dois princípios fundamentais para que
uma crítica cumpra o papel de crítica, sem instrumentalização ou abuso. É uma
questão de critérios, sempre os critérios; sem eles, estaremos perdidos. A
crítica sem critérios pode ser direcionada para qualquer lado, para qualquer
fim. Tenha medo do que não tem limite algum, leitor.
Respeita
esses princípios aquele que usa as redes sociais para reforçar uma mensagem de
caráter expressamente antidemocrático, que ameaça fechar o Supremo? Respeita
esses princípios aquele que ameaça ministros de morte? Não me parece. E o abuso
é claro. Assim como é clara a instrumentalização.
5. A DesPec da Bengala e a CPI
manca: paus de lenha na fogueira
Bia
Kicis, deputada do PSL, diz ter “acordado” contra o ativismo judicial. Afinal,
o que ela entende por ativismo? Ora, vejam só: a deputada acordou. Acordou,
lavou o rosto, escovou os dentes e seguiu a recolher assinaturas para propor a
revogação da PEC da Bengala, “com o objetivo casuístico de abrir quatro vagas
que seriam preenchidas pelo presidente Bolsonaro”. Assim se combate o ativismo?
Já
um histriônico senador quer CPI Lava Toga. Uma CPI inconstitucional, em cuja
fundamentação o parlamentar já deveria ser sindicado, porque inverte o sentido
de um voto do ministro Celso de Mello. Isso está denunciado no belo artigo
escrito na Folha por José Luis Oliveira Lima e Rodrigo Dall’Acqua. (ver aqui),
ao qual acrescento: A Lava Toga é tão inconstitucional que o porteiro do
Supremo a declara nula, írrita, nenhuma.
Quem
fala sobre a deputada-procuradora Kicis é a revista Veja. Isso está no link
mais acima, na matéria de Daniel Pereira e Laryssa Borges. Já sei, já sei, o
veículo é de esquerda. Assim como a ConJur, e a Folha, e o NY Times, e a
Economist (!), a Globo (!!), e O Antagonista (!!!). E qualquer jornalista que
faça seu trabalho. E o Francis Fukuyama. O Papa. E o Genilson, quem deu uma
voadora em um jogador do Grêmio e foi expulso. E qualquer um que ouse dizer
qualquer coisa que contrarie o novo poder.
É
todo mundo “de esquerda”. Fomos salvos de nos tornarmos “uma Venezuela”. Não
esqueçamos que o Supremo Tribunal já estava na alça de mira (ups – para quem
gosta de armas...) ainda na campanha eleitoral, quando o então candidato
vencedor chegou a sugerir aumentar o número de ministros do Supremo para 21,
para botar “dez isentos” lá dentro. Sem esquecer a questão do jipe e dois
soldados.
6. Sempre ainda a sombra do
jipe: as comemorações dos ecos de 64
Querem
algo mais violentamente simbólico que a tese do soldado e do cabo, retwittada
em todos os momentos em que o Supremo desagrada os twitteiros enlouquecidos? As
cruzadas de videogame (a expressão é de Celso Barros) vão até que ponto? Até a
destruição do alvo? É um jogo ou é um país que deve ser governado? Como
explicar que o presidente eleito, depois de jurar compromisso com a
Constituição Federal, determine as “comemorações devidas” do golpe de 1964?
Sobre
as “comemorações”, o jornalista Bruno Boghossian resumiu tudo: Mesmo que se
trate apenas de uma afronta barata, o revisionismo histórico é incompatível com
o papel de um presidente. Bolsonaro patrocina a subversão de valores
democráticos ao convocar uma celebração de um regime que fechou o Congresso,
prendeu opositores e usou tortura e mortes como métodos oficiais de repressão.
Bruno disse tudo em poucas palavras. Na mesma Folha, editorial vai em linha similar.
Nada mais precisa ser dito. Não preciso acrescentar que, quando entrei na
faculdade, o Congresso foi fechado (1977). E que em 64 vi meu pai ser preso...
Tudo já foi dito. São ecos de 1964...
Aliás,
se a Venezuela é uma ditadura e o governo Bolsonaro pensa até em invadi-la por
isso, por qual razão esse mesmo governo quer comemorar a ditadura brasileira?
Uma contradição absoluta!
7.
A "lava jato" e Bolsonaro
Agora,
a uma das perguntas de Celso de Barros — “A Lava Jato vai se deixar usar por
Bolsonaro?” —, essa eu não tenho condições de responder. Não sei. Só o tempo
dirá. Mas consta que Sergio Moro já sabia da prisão do ex-presidente Michel
Temer um dia antes. De onde será que Maia ficou tão bravo? De todo modo, sei o
que disse o outro Celso, o de Mello, decano do Supremo que aqui defendo dos
ataques histéricos da turma da neocaverna:
“Eis
a que ponto chegaram o fanatismo, o obscurantismo, o fundamentalismo e e o
caráter profundamente retrogrado dos deputados de alguns partidos, como o PSL”.
O
que eu sei é que estamos trilhando um caminho muito perigoso. A coincidência da
prisão de Temer, às pressas, para dar um recado ao Supremo não surpreende
ninguém. Ou surpreende? Bom, leiamos o voto do desembargador que concedeu o HC.
8. Vamos encarar de frente as
coisas?
Vamos
falar sério? Sem fanatismos e obscurantismos? Ora, a não ser os corruptos,
ninguém é a favor da corrupção. Ninguém gosta de impunidade. Daí é fácil acusar
qualquer um de qualquer coisa. Não vai ter muito trabalho aquele que deseja
demonizar um ministro que “solta um corrupto”, quando, vejam só, “finalmente
alguém decidiu fazer alguma coisa nesse país!”. O que diz a lei, o que diz a
Constituição? Não importa. Não pode é “soltar corrupto”.
E
aí está aberta a Caixa de Pandora. Vamos parar de querer ter o monopólio da
virtude. E vamos fazer um rescaldo de verdade sobre a "lava jato",
conforme bem denuncia o Professor titular da USP, Gilberto Bercovici (ler
aqui).
Quem
vigia os vigilantes? E, agora, quem vigia os vigilantes dos vigilantes que não
os querem vigilando?
Todos
nós, leitor. Já disse aqui: a democracia só morre mesmo, de verdade, se não
mais houver democratas. E defender a democracia é defender aquilo que ela é: o
respeito às regras do jogo.
Critiquemos
o STF quando o STF desrespeitar as regras do jogo, e que nossa crítica esteja
baseada nas regras do jogo. E que se respeite as regras do jogo quando
quisermos punir aqueles que desrespeitam as regras do jogo. Porque sem regras,
já não mais haverá jogo.
Porque
quando não há limites nem razões legítimas, caímos no abuso e na
instrumentalização.
9. A "lava jato" e
as abelhas de Mandeville
Seria
bom que os membros do Poder Lavajatístico — e outros punitivistas-moralistas —
lessem uma fábula bem liberal, como a do Barão de Mandeville. Eis o resumo:
As
abelhas viviam prosperamente em sua colmeia, até que um grupo de abelhas
"neovirtuosas" decidiu dar um fim aos vícios (corrupção era o menor
deles!). Foram à rainha e pediram que fosse decretada a virtude. E assim se
fez. Todos virtuosos. Bom? Não. Ruim.
Sem
vícios, a sociedade começou a ruir. Advogados ficaram sem trabalho,
procuradores não tinham quem denunciar, médicos sem pacientes, policiais
ociosos. Fracasso total. As abelhas se reuniram e pediram à rainha o
restabelecimento dos vícios. Moral da história? É impossível uma sociedade
formada apenas por virtuosos. E ninguém tem o monopólio da virtude.
Por
isso a necessidade de garantias constitucionais para os que sucumbem aos
vícios. Eles fazem parte da sociedade. Hobbes já sabia disso. Aliás, nós,
juristas, vivemos dos vícios. Vícios privados, benefícios públicos, diria
Mandeville. Eis a moral da história.
Espero
que a ironia seja bem entendida. E, como tal, a fábula não deve ser lida ao pé
da letra. Afinal, abelhas não falam!
Post scriptum: como fiz
resenha indicando esse excelente livro do Rodrigo Mudrovitsch, convido-os para
o lançamento, que será no dia 2 de abril, as 19h, no auditório do CIEE (Rua
Tabapuã, 445 – Itaim Bibi, SP)
Lenio Luiz Streck é
jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do
escritório Streck e Trindade Advogados Associados
Revista Consultor
Jurídico
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