sábado, 18 de abril de 2009

FIDELIDADE CANINA

Fotos do casal Lupi (cão preto) e Lady (amarelada)



Ela chegou na calada da noite e misteriosamente, acomodou-se em frente ao portão da casa frontal à minha. Ficava brincando com o Lupi, cão do vizinho da referida casa e, por mais que tentassem enxotá-la, sempre retornava e por ali se acomodava. No dia seguinte, escutei uma senhora que estava esperando o ônibus na parada em frente, gritar com ela, mandando-a para casa e chamando-a de Lady. De qualquer forma, ela não obedeceu a ordem, permanecendo no local.

Vários dias se passaram e a cadelinha Lady não foi embora. Ficou brincando com Lupi, ela do lado de fora e ele do lado de dentro do pátio, ambos separados pelo portão de ferro. Em pouco tempo, ela entrou no “cio” e começou a procissão de cães em nossa rua, todos eles disputando o privilégio de copularem com Lady. Inexplicavelmente, ela rejeitava-os todos sistematicamente, somente cedendo ao assédio do cãozinho Lupi, justamente aquele pelo qual ela parecia estar enamorada.

Bem, a confusão de cães a qualquer hora do dia ou da noite era tanta, que o vizinho resolveu colocá-la dentro do pátio, juntamente com o Lupi. Era tudo o que ela queria. Ali ficou feliz, trocando suas carícias apenas com aquele que seu coração canino elegeu. Quanto ao resto da cachorrada, ficou do lado de fora só na base do “voyerismo”. Ah! Menos um, o Coda. O cãozinho pinscher que, por seu tamanho conseguia entrar por uma fresta da cerca, ficava em roda do casal, sem conseguir atingir seu intento, eis que, a cada investida, era logo rechaçado pelos dois amantes.

Ao passar o período fértil da cadelinha, eu achei que ela iria embora. Não foi o que ocorreu. Ela continuou ali, vivendo com o cão que parecer ser a sua cara metade. Ficam os dois repartindo o mesmo pano de dormir, comendo a mesma comida e fazendo demonstrações de afeto como se namorados fossem. Trata-se de um estranho caso de amor entre cães com o qual eu nunca havia tido a oportunidade de me defrontar, capaz de fazer inveja até mesmo aos Romeus e Julietas da vida. Literalmente, trata-se de um caso da tão propalada fidelidade canina.

Jorge André Irion Jobim

domingo, 12 de abril de 2009

A COLIGAÇÃO


Tudo ocorreu em um domingo há quase vinte dois anos atrás. O sol quente das primeiras horas da tarde parecia acentuar ainda mais o clima de monotonia que reinava na Vila Norte, acelerando também os efeitos da cachaça barata que era ingerida pelos homens reunidos do lado de fora do “boteco” do meio da quadra da Rua Alfredo Carvalho. A medida em que os sucessivos “martelinhos” iam sendo absorvidos, esquentavam também os ânimos dos homens, envolvidos que estavam em uma discussão que girava em torno da política.

Sentado sob a sombra de um pinheiro, eu observava atento, pois sempre me senti fascinado pelo espírito comunitário que impera nas rodas dos bebedores de cachaça. Todos bebem, não ficando ninguém de fora, não importando quem paga. Mesmo aqueles que na chegada se diziam “estar duros”, após alguns goles, como que por magia, descobrem que tinham nos bolsos uma cédula perdida, que naturalmente será utilizada para pagar “mais uma”. Normalmente, no dia seguinte irá faltar alguma coisa nas já minguadas refeições daqueles homens, quase todos operários mal remunerados.

Durante os debates ali travados, passaram em pauta os mais diversos assuntos políticos. Dividiam-se as opiniões sobre quem ganharia para governador do Estado nas próximas eleições, porém, o assunto que mais causava polêmica era sobre qual dos partidos políticos, o PMDB ou PDT, teria direito à herança política deixada pelo ex-presidente Getúlio Vargas. Nesses momentos o “seu Candinho”, um aposentado da Viação Férrea, com os olhos injetados de ácido etílico e de saudosismo, contava histórias sobre como eram bons para os trabalhadores, aqueles tempos em que vivíamos sob o governo daquele que, ao se referir, ele chamava de “o nosso último grande caudilho”.

Eu, cá com os meus botões, fiquei fazendo comparações, analogias entre a cachaça e a política. Ambas têm pontos em comum, sendo que um deles é o fato de que servem para embriagar, desviando o pensamento dos humildes de suas tristes realidades. Eles, sob o efeito da aguardente, criam as mais incríveis soluções para problemas seculares, daqueles que vêm afligindo os governantes e filósofos através dos tempos. A política, por outro lado, tem o poder de semear esperanças nas mentes simples destes operários, fazendo-os sonharem com o dia em que, se eleitos os seus favoritos, poderão comer ao menos uma vez por dia, um bom bife com batatas fritas.

Da cachaça, sempre “batizada” com uma generosa dose de água por conta do dono da “birosca”, só resta no dia seguinte uma incrível ressaca que eles tentam curar através de chazinhos, cujos benefícios eles aprendem oralmente e são transmitidos de geração em geração. Isso para que não percam um dia de trabalho, sob pena de serem demitidos.

Da política, passadas as eleições, sobra apenas a desilusão, com o conseqüente recolhimento dos candidatos vencedores às suas redomas criadas pelo poder. Não mais candidatos nas vilas, não mais sorrisos, não mais o orgulho de ter apertada a mão e ter escutado de um deles, palavras de esperança, de incentivo. Apenas o antigo esquecimento.

Estava eu perdido nessas divagações, quando de repente fui trazido de volta ao cenário pelos gritos exaltados dos componentes do grupo de amantes da “purinha”. Acontece que o “seu João Carpinteiro”, sentindo-se ferido em seus brios, resolveu partir para a mais antiga maneira de decidir questões pendentes, isto é, a agressão física. O agredido foi o “seu Antão”, um homem negro que, embora de idade avançada, tem uma estrutura física avantajada, conseqüência de longos anos de trabalho braças como “coqueador” de sacos, sendo que no “entrevero”, até “ferro branco” surgiu, não se sabe de onde. Felizmente todos estavam em adiantado estado de embriaguez, não conseguiam os oponentes nem mesmo se manter em pé por suas próprias forças, quanto mais brigar.

A coisa não ia passar do “já te pego”, “já te largo”, não fosse a intervenção do dono do bar, em cujas qualidades não se pode enumerar a de ter paciência. Deu de mão num relho trançado que ele guarda estrategicamente pendurado em um dos toscos armários de seu estabelecimento, usado para resolver “pendengas” surgidas entre seus habituais fregueses e para aplicar penas aos maus pagadores, aqueles que acham que o preço está além daquilo que eles realmente beberam. Distribuiu ele cinco ou seis “relhaços” nas costas dos brigões, fazendo com que os mesmos tentassem uma retirada honrosa e nesse afã, tropeçassem um no outro, caindo ambos enrodilhados no chão. Mais algumas bordoadas foram desferidas e eles, ao tentarem escapar, notaram que não havia saída; somente apoiados um no outro poderiam fugir da ira do comerciante. E assim aconteceu: lá se foram eles abraçados, humilhados rua afora, emitindo gemidos de dor (pois um relho trançado não deixa dúvidas) e proferindo palavrões e promessas de vingança.

Encerrou-se sem maiores incidentes o fato, restando apenas as considerações comentários dos vizinhos abelhudos que, ansiosos por novidades, haviam deixado seus afazeres de lado para assistirem ao evento.

Quando mim, para não dizer que nada aprendi com o ocorrido, posso afirmar que pelo menos uma coisa ele teve de positivo; descobri que a cachaça, frente às circunstâncias adversas que se apresentaram para os nossos ferrenhos opositores, conseguiu uma coisa que antes, durante as discussões, parecia impossível, isto é, a COLIGAÇÃO entre o PMDB e o PDT.


Jorge André Irion Jobim

segunda-feira, 6 de abril de 2009

FARDOS PESADOS

Outro dia passou na frente da minha casa um menino franzino carregando com muito esforço, dois sacos cheios de recipientes de plástico. Perguntou-me se eu não possuía algumas garrafas vazias para lhe dar. Eu costumo guardar algumas para acumular água da chuva com a finalidade de regar as plantas, porém, como existiam umas quatro vazias, acabei dando-as ao menino.

Bem, esta é uma coisa corriqueira hoje em dia, porém o que me marcou bastante, foi o fato de ele ter me relatado que estava juntando dinheiro para fazer o tratamento da irmã que estava doente. Falou-me ele que todos os dias passaria por ali e pediu que, se eu conseguisse juntar outras garrafas, as guardasse para ele.

Alguém poderá dizer maliciosamente que o menino “me passou a conversa”, falando em tratamento da irmã apenas para me sensibilizar e entregar todo o material para ele com exclusividade, já que são várias as pessoas que passam pelas ruas procurando material reciclável. Pode até ser, porém prefiro dar um voto de confiança àquele menino que me falou de uma maneira tão firme e convincente, que eu não me atrevo a duvidar de seus motivos. Até porque, por sermos levados muitas vezes a desconfiar de tudo e de todos, acabamos aprendendo lições duras e inesquecíveis com os fatos da vida.

A lição a que me refiro, aconteceu em uma noite em que eu e meu filho Deco estávamos sentados em uma pracinha erma da cidade, na qual eu havia levando meu cachorro Floquinho para passear.

Deixamos o carro estacionado a uma certa distância e fomos sentar em duas cadeiras de praia que havíamos levado. De repente, aproximou-se do veículo um menino pequeno que devia ter uns sete ou oito anos e, sem nos enxergar, ficou espiando para dentro do veículo. A primeira impressão que me veio à cabeça, foi a de que ele estaria querendo furtar alguma coisa que estivesse ao alcance de suas mãos, já que a janela estava semi-aberta.

Não foi o que aconteceu. O menino foi se afastando e, ao nos ver sentados a uma certa distância, perguntou-nos se sabíamos quem era o dono do automóvel. Eu, ainda impregnado daquele meu primeiro sentimento de desconfiança, falei-lhe que não sabia. Queria ver qual era a intenção do menino. Ele se aproximou e disse que era uma pena, pois se soubesse quem era o dono, pediria para lavar o veículo, tudo com o objetivo de ganhar alguns trocados.

Neste momento eu pude perceber que ele carregava uma sacolinha de plástico dentro da qual estava um pacote de um quilo de açúcar. Disse-nos ele que estava precisando de dinheiro pois seu pai estava desempregado. Afirmou-nos ainda que já havia vendido seu videogame, sua bola de futebol e sua “bike”, tudo com a finalidade de comprar as “coisas para dentro de casa”. Que talvez tivesse que vender suas chuteiras, já que estavam passando necessidade.

O relato daquela criança me deixou sem ter o que dizer, completamente envergonhado e culpado de ter desconfiado e mentido para ela. Ao terminar de falar, o menino, que tinha nos olhos um brilho de quem encara os desafios da vida com uma determinação que muitas vezes falta aos adultos, foi embora, desaparecendo na escuridão da pracinha mal iluminada.

É claro que ele sumiu fisicamente de minha visão. Sua imagem caminhando com a sacolinha e desaparecendo no horizonte, permanece até hoje em minha mente e na minha retina, como se fora uma lição que eu precisava aprender para eliminar meus preconceitos e parar de fazer pré-julgamentos.

A partir daquele dia, resolvi adotar em minha vida o princípio da boa-fé em relação às pessoas que se aproximam de mim. Sei que é uma decisão que nada contra a corrente, eis que hoje em dia somos aconselhados a termos uma atitude de prevenção em relação a tudo o que ocorre ao nosso redor. Sei que muitas vezes eu irei perder confiando nos outros, mas tenho certeza que não carregarei mais esta imensa culpa de fazer mau juízo de um menino que tenta realizar a tarefa hercúlea de auxiliar a família. Alem disso, poderei ter contato com pessoas incríveis e interessantes que o preconceito e o medo de arriscar muitas vezes nos impedem de conhecer.

São duas histórias verdadeiras e simples, de dois meninos que já na tenra idade, transportam nos ombros, por suas próprias iniciativas, fardos bastante pesados que a vida lhes colocou sobre as frágeis costas e que eles carregam com uma dignidade e altivez que muitas vezes nos falta no enfrentamento dos problemas que nos afligem no dia-a-dia.

Como eu disse anteriormente, foi uma lição dura, porém inesquecível.

Jorge André Irion Jobim. Advogado de Santa Maria, RS