O objetivo desta coluna é analisar se é possível fazer
contingenciamento das verbas com educação no Brasil atual. Trata-se de uma
análise jusfinanceira envolvendo prioritariamente a Constituição e a Lei de
Responsabilidade Fiscal. Não serão abordados aspectos sobre a importância da
educação para a sociedade — o leitor será aqui poupado em prol do ponto central
sob análise; para esse assunto, relevantíssimo, muitos textos qualificados já
foram escritos, aos quais deve se dirigir o leitor interessado.
A Constituição estabeleceu uma espécie de federalismo
educacional determinando que os municípios atuem prioritariamente no ensino
fundamental e na educação infantil (artigo 211, parágrafo 2º), e determinou
também que os estados e o Distrito Federal atuem prioritariamente no ensino
fundamental e médio (artigo 211, parágrafo 3º). À União cabe organizar o
sistema federal de ensino, financiando as instituições de ensino públicas
federais e exercendo a função redistributiva e supletiva em matéria
educacional, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e
padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira
aos demais entes federados (artigo 211, parágrafo 1º), de forma colaborativa
(artigo 211, caput).
Para dar conta desse rol de atribuições, a Constituição
obrigou a União a aplicar anualmente em educação pelo menos 18% de toda sua
receita de impostos. Os demais entes federados têm que aplicar nunca menos de
25% sobre a mesma base de cálculo, acrescida das transferências obrigatórias
que forem recebidas (artigo 212). Trata-se do federalismo financeiro
educacional, contrapartida necessária às atribuições acima descritas.
A vinculação financeira dessas receitas às despesas com
educação é uma exceção ao princípio da liberdade orçamentária do legislador
(artigo 167, IV, CF) e é uma cláusula pétrea constitucional (artigo 60,
parágrafo 4º, IV), pois quem impõe a obrigação deve também dar os meios, e, em
face da importância da educação para o país, o constituinte estabeleceu fontes
perenes e protegidas para seu financiamento.
Considere-se que a vinculação financeira das verbas para
educação é um patamar mínimo de financiamento obrigatório, podendo o Poder
Legislativo, de cada nível federativo, estabelecer valores superiores para essa
espécie de investimento em pessoas, ou, como se diz nos dias atuais, em capital
humano.
Pois bem, estamos em uma crise que se iniciou em por volta
de 2015/2016 e persiste, a despeito dos muitos esforços dos diversos governos
federais durante esse período. Logo, o lençol orçamentário encurtou e,
portanto, é a hora das escolhas difíceis[1], dentre elas as de cortar os gastos
ou aumentar a dívida ou aumentar a arrecadação. Concentremo-nos apenas nos
gastos, objeto desta análise.
Antes de singelamente cortar os gastos, as normas
determinam que se deve contingenciar. Isso porque o orçamento é uma lei,
aprovada pelo Poder Legislativo, e que deve ser respeitada. Logo, o Poder
Executivo não pode cortar, pode contingenciar.
Contingenciar significa limitar empenhos e movimentação
financeira e pode ocorrer a cada bimestre, caso a receita prevista não comporte
o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo
de Metas Fiscais (artigo 9º, caput, da Lei de Responsabilidade Fiscal). Ou
seja, há um telos, que é o cumprimento das metas estabelecidas para o pagamento
da dívida pública, o qual, se ameaçado pela queda na arrecadação, pode ensejar
o contingenciamento, segundo critérios fixados pela Lei de Diretrizes
Orçamentárias. Só esse fato já seria suficiente para ficarmos de cabelos
arrepiados, pois implica em subordinar todos os compromissos sociais e
civilizatórios do país ao pagamento do serviço da dívida pública — o que já foi
objeto de muitos textos[2]. Registre-se que só pode ocorrer o contingenciamento
se as receitas estiverem em queda, o que não foi ainda comprovado. Porém,
ultrapassemos esse ponto lastimável e prossigamos na análise objeto deste
texto.
O precioso e raro leitor que conseguiu ler com atenção até
este ponto deve se alegrar, pois chegamos ao aspecto central do assunto. Está
no parágrafo 2º do artigo 9º, da LRF:
§2º Não serão objeto de limitação as despesas que
constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas
destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e as ressalvadas pela lei de
diretrizes orçamentárias.
Limpando o texto acima, lê-se: não serão objeto de
limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do
ente.
Em síntese: a Constituição obriga a União a organizar o
sistema federal de ensino, financiar as instituições de ensino públicas
federais e exercer a função redistributiva e supletiva em matéria educacional,
tudo conforme o artigo 211 da Constituição, acima descrito. Ou seja, esta é uma
obrigação constitucional do ente federado União, que não pode ser
contingenciada — ou, no jargão, “não pode ser objeto de limitação”.
Eis o ponto. Esse parágrafo da Lei de Responsabilidade
Fiscal impede que seja feito o contingenciamento dos gastos com educação, pois
ele se constitui em obrigação constitucional da União. As escolhas difíceis
decorrentes do encurtamento do lençol orçamentário não podem alcançar os gastos
com educação, pois eles não podem ser contingenciados, conforme a Lei de
Responsabilidade Fiscal. Simples assim.
Seria possível perguntar: e as demais obrigações
constitucionais, tais como alimentação, trabalho, moradia, lazer, transporte e
outras constantes do artigo 6º da CF? Não são também obrigações constitucionais
dos entes federados? Sim, sendo que também estão protegidas pela LRF. Ocorre
apenas que os gastos com educação e saúde são duplamente protegidos, pois possuem
fonte própria de financiamento mínimo estabelecida na Constituição e, como tal,
estão inseridos na proteção das cláusulas pétreas, por força do artigo 60,
parágrafo 4º, IV, CF. Porém, o que exceder o mínimo deve constar da Lei
Orçamentaria Anual, sendo também protegido, pois se configura em obrigação
constitucional da União e obrigação legal para aquele exercício.
Façamos um paralelo com o que foi feito durante o governo
Temer com as receitas da Justiça do Trabalho. Naquele caso não foi feito
contingenciamento, mas verdadeiro corte das verbas pleiteadas, pois estas
sequer foram alocadas na Lei Orçamentária Anual. O Congresso não aprovou as
verbas no montante que a Justiça havia projetado, e, com isso, os valores foram
efetivamente cortados, antes de se transformar em lei. O sufocamento financeiro
foi feito pelo Poder Legislativo. É solar a diferença, pois, no caso
educacional, o montante financeiro é protegido pela Constituição, foi aprovado
pela Lei Orçamentária Anual, e o contingenciamento está sendo realizado pelo
Poder Executivo sobre parcelas que não podem ser contingenciadas, na forma do
artigo 9º, parágrafo 2º, LRF. Aqui, o sufocamento financeiro está sendo
irregularmente feito pelo Poder Executivo, ao arrepio da Constituição, da LRF e
da LOA.
No caso, há prevalência da Constituição sobre as leis,
pois o financiamento educacional é protegido constitucionalmente, não só no
nível mínimo, mas também pelo que o Poder Legislativo tiver alocado além do
mínimo, uma vez que, em ambos os casos, se trata de uma obrigação
constitucional da União. Afinal, qualquer primeiro-anista de Direito sabe que a
Constituição vale mais do que as leis (decisão colegiada do Poder Legislativo),
e estas valem mais do que os decretos (decisão isolada do chefe do Executivo),
sendo estes os instrumentos jurídicos através dos quais são feitos os
contingenciamentos. Há uma prevalência das normas da Constituição sobre as do
Poder Legislativo, e destas sobre as normas do Poder Executivo.
O papel do STF é exatamente este: proteger a Constituição
de ataques, venham de onde vierem, inclusive dos governos — quaisquer governos,
seja qual for o período e o território federativo —, bem como do Poder
Judiciário, e das influências públicas ou privadas que podem perverter sua
interpretação, o que inclui a voz rouca das ruas e a das redes sociais. É
necessário que o STF proteja a Constituição, pois é ela que nos une em
patamares mínimos de convivência civilizatória e contra os arbítrios.
Quem, no STF, cumprirá o icônico papel que Daniel
Cohn-Bendit exerceu nas manifestações de maio de 1968 em Paris, onde uma das
palavras de ordem era "é proibido proibir"?
[1] Sobre o tema,
pautado pela obra de Guido Calabresi e Phillip Bobbitt, Tragic Choices, porém
com enfoque de direito financeiro, ver meu livro Orçamento Republicano e
Liberdade Igual, item 3.4.1.
[2] Ver, por todos:
https://www.conjur.com.br/2016-nov-29/contas-vista-vale-constituicao-ou-anexo-metas-fiscais-lrf.
Fernando Facury Scaff é
sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff –
Advogados, professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo
(USP) e de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Pará
(UFPA).
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-mai-14/contas-vista-eproibido-proibir-notas-bloqueio-verbas-educacao