Caso
inédito entre companhias de capital aberto envolvidas em escândalos de
corrupção que resultaram em acordos de leniência, a CCR – empresa de concessão
de rodovias, aeroportos e barcas – irá financiar delações de quinze de seus
ex-executivos, para que relatem ao Ministério Público Federal do Paraná e ao
Ministério Público do Estado de São Paulo ilícitos cometidos pela empresa. O
valor investido pela companhia nessas delações não será pouco. A CCR, cujos
controladores são os grupos Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa (também
envolvidas em vários escândalos de corrupção) e o grupo Soares Penido, se
dispôs a pagar 71 milhões de reais para os delatores – o que representará, em
média, um desembolso mensal de 78 mil reais para cada um durante cinco anos.
A
proposta final de financiamento dos delatores foi aprovada na reunião do
Conselho de Administração da companhia, no dia 19 de fevereiro. O plano, que
irá para votação na assembleia dos acionistas na próxima segunda-feira, dia 22,
enfrenta grande resistência dos acionistas minoritários, que se sentem
prejudicados. Mauro Cunha, presidente da Associação de Investidores no Mercado
de Capitais, a Amec, considera o pagamento “escandaloso”. Não apenas por
prejudicar os acionistas minoritários, que nada têm a ver com os crimes, mas
que acabam, indiretamente, pagando por eles. Mas também por passar para a
sociedade a sensação de impunidade, que acaba por desmoralizar o mercado de
capitais como um todo. “Ao remunerar os corruptores para delatar, a CCR está
premiando o crime”, disse Cunha.
Adonis
Callou é subprocurador-geral da República e atua na Lava Jato junto ao Superior
Tribunal de Justiça. Estranhou a decisão da CCR de pagar uma indenização para
seus ex-executivos fazerem a delação premiada e disse nunca ter visto este tipo
de procedimento nas delações que acompanhou. Ele explicou que o principal
objetivo dos acordos de leniência e delação premiada é denunciar os agentes
públicos para que cesse a corrupção. Mas teme que, num acordo em que os
executivos são indenizados, a verdade não venha completamente à tona, pois soam
como uma combinação entre eles e a companhia no sentido de preservar os
controladores. “Esse tipo de acerto pode desvirtuar o princípio dos acordos de
delação premiada”, disse. “Os acordos existem para ressarcir os lesados e não
os que cometeram crimes.”
Outros
dois procuradores da República em Brasília, que preferiram se manter no
anonimato, explicaram que a “delação financiada” não é um assunto normatizado
pelo MP porque nunca se pensou que pudesse ocorrer. Portanto, sequer pode ser
considerada uma ilegalidade. Mas também veem com suspeita este tipo de
procedimento, que consideram um risco, pois aumenta a possibilidade de omissão
intencional de informações para não desagradar os controladores. Um dos problemas
é que, em caso de ocultação de provas que venham a ser descobertas no futuro, o
acordo será invalidado. “Esse tipo de delação parece aumentar o risco de
reserva mental, que é quando o delator não fala o que sabe por medo de
retaliação da companhia”, disse um deles.
Celso
Vilarde, um dos advogados da CCR, disse que o acordo é público e reagiu com
espanto ao saber que alguns procuradores estavam questionando a indenização aos
delatores. “Esse tipo de pagamento foi feito pelo menos em três acordos de
delação e leniência em Curitiba”, disse. “Um deles, inclusive, homologado pelo
juiz Sergio Moro.” Essa, segundo ele, é a forma de incentivar os executivos que
cometeram deslizes a contar o que sabem. Caso a delação não seja feita, as
empresas podem ser condenadas por improbidade. Nesse caso, podem ter que pagar
multas que correspondem até 80% de seu patrimônio. Isso, simplesmente, quebra a
empresa, afirmou.
Não
se pode acusar os controladores da CCR de desorganização. A companhia fez um
alentado contrato de indenização, já assinado pelos delatores, que, em seguida,
se desligaram da empresa. O contrato estabelece não só o montante que terão
direito a receber e a forma de pagamento (parcelas mensais, durante cinco anos
reajustadas pela variação do IPCA, além de juros de 0,5% ao mês em caso de
atraso no desembolso da parcela), como também as condições para receberem os
valores acordados. Condições que deixam claro o compromisso dos delatores com a
CCR.
Pelo
“Instrumento particular de distrato de contrato de trabalho e outras avenças”,
como é chamado o documento, ficou definido que “os assuntos confidenciais
somente poderão ser revelados na hipótese de o delator ser compelido a
revelá-los por força de lei ou norma emanada por uma autoridade governamental à
qual o delator esteja sujeito.” A mesma cláusula determina que “em qualquer
hipótese que os Assuntos Confidenciais devam ser revelados, o delator obriga-se
a informar previamente a Companhia sobre quais Assuntos Confidenciais serão
divulgados e a extensão de sua divulgação, para que a Companhia possa tomar as
medidas de proteção e reparação adequadas.”
O
contrato deixa claro que há limites sobre o que os delatores vão contar aos
promotores. Destaca que “o colaborador, caso seja obrigado a divulgar Assuntos
Confidenciais, compromete-se a fornecer apenas a parte que é legalmente exigida
e a empreender todos os esforços razoáveis para obter garantias confiáveis de
que o tratamento confidencial será dado a tais Assuntos Confidenciais”. Além
disso, os delatores se comprometem a “não fazer declarações públicas a
quaisquer terceiros, tais como veículos de mídia e impressa, investidores e
analistas de mercado, bem como a quaisquer pessoas físicas ou jurídicas (…) que
sejam prejudiciais à Companhia e às sociedades pertencentes ao grupo CCR ou à
reputação de seus executivos e empregados”.
No
caso de descumprimento de uma das cláusulas do acordo, “a parte responsável
ficará sujeita ao pagamento de perdas e danos, e a remuneração pela colaboração
não será mais devida pela CCR”. Para Mauro Cunha, da Amec, o contrato passa a
impressão de que a empresa está “orientando os delatores a revelar para o MP
apenas o que os controladores querem que seja informado”.
O
contrato desce a minúcias de como será feito o desembolso do financiamento da
delação e afirma que “o comprovante de transferência eletrônica de recursos
servirá de comprovação do pagamento da remuneração pela colaboração”. Os
colaboradores devem indicar a conta corrente e a agência bancária. Pelo acerto,
os custos dos delatores com advogados e demandas de terceiros serão ressarcidos
pela companhia.
As
negociações da empresa com seus executivos para que aceitassem fazer a delação
começaram no ano passado, depois que a CCR passou a ser investigada por
esquemas de corrupção na concessão de estradas no Paraná e em São Paulo. As
primeiras denúncias de irregularidades nos contratos da companhia começaram a
aparecer na imprensa no dia 23 de fevereiro de 2018, depois do vazamento da
delação premiada do doleiro Adir Assad, no âmbito da 48ª fase da Operação Lava
Jato. Em seu depoimento, Assad contou que a CCR e suas controladas teriam
celebrado, entre 2009 e 2012, contratos fictícios de patrocínio com a sua
empresa de marketing esportivo totalizando o valor de 46 milhões de reais.
Segundo ele, os recursos teriam sido repassado pela CCR à sua empresa e os
valores entregues a Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto, ex-diretor da Dersa,
empresa de Desenvolvimento Rodoviário S.A., durante os governos dos tucanos
José Serra e Geraldo Alckmin, em São Paulo. Assad era apontado nas
investigações da Lava Jato como fornecedor de dinheiro em espécie para as
empreiteiras pagarem propina. Em seu depoimento, ele contou que suas empresas
de fachada eram subcontratadas e que o valor das notas frias era usado para
abastecer o caixa dois das empreiteiras. Assad listou, inclusive, os pagamentos
recebidos por três concessionárias da CCR em São Paulo: Nova Dutra, Raposo
Tavares e Bandeirantes.
Diante
das irregularidades divulgadas pela imprensa, o Conselho de Administração da
CCR se reuniu às pressas e determinou a constituição de um comitê independente
para conduzir as investigações. Em maio, porém, a companhia recebeu uma
intimação do Ministério Público do Estado de São Paulo para prestar informações
sobre o caso. Logo em seguida, a empresa seria novamente alvo de denúncias,
sendo acusada por Assad de ter doado 5 milhões de reais para a campanha de
Geraldo Alckmin por meio de caixa dois. Em setembro, em nova denúncia, Assad
dizia que o caixa dois da CCR tinha sido maior do que a empresa estimava. A
situação da empresa se agravou ainda mais quando a 55ª fase da Operação Lava
Jato, conduzida pela Polícia Federal do Paraná, detectou irregularidades em
concessões da CCR no estado. A empresa soltou um informe ao mercado insistindo
na tese de que havia constituído um comitê independente para conduzir as
investigações.
A
então governadora do Paraná, Cida Borghetti, anunciou que, por causa das
denúncias, faria uma intervenção no contrato de concessão da CCR, na Rodonorte,
no Paraná. A empresa afirmou que seguia “no firme propósito de contribuir com
as investigações”. Em novembro, o Conselho de Administração voltou a se reunir,
dessa vez para discutir a necessidade de a CCR fechar um acordo de leniência. O
temor da companhia, a partir da decisão da governadora do Paraná, era de que o
negócio se inviabilizasse. O conselho decidiu fechar os acordos de leniência no
menor tempo possível para não só evitar outras perdas de concessões como também
para a CCR não ser proibida de participar de leilões de novos projetos.
Nesse
momento, a companhia se deparou com um problema: nenhum de seus executivos
estava disposto a se colocar como culpado. A CCR tinha pressa. Com o cerco se
fechando contra ela, a empresa precisava apresentar ao Ministério Público
provas que mostrassem sua disposição em colaborar. A empresa, em uma ata de
assembleia, justificou a necessidade de pagar indenização para os executivos
entregarem o que sabiam porque, segundo ela, o comitê criado para rastrear os
malfeitos da empresa não tinha conseguido levantar tais informações.
Segundo
a ata de reunião do Conselho de Administração, realizada em primeiro de
novembro do ano passado, para a celebração do acordo de leniência, seria
necessária uma das duas alternativas: ou “um longo e incerto processo
investigativo pelas autoridades, ou a colaboração de pessoas envolvidas nos
fatos ocorridos”. De acordo com os assessores legais do Conselho, tudo indicava
que “certos administradores e funcionários da companhia, atuais e antigos, têm
a capacidade única de organizar e disponibilizar as informações que seriam
necessárias para o integral esclarecimento dos fatos”. Contudo, diziam eles, “é
esperado que relutem em colaborar com a rapidez necessária”. Portanto, seria
necessário um incentivo para convencê-los a colocar a cabeça a prêmio. Foi,
então, que surgiu a ideia do pagamento da indenização, batizado pela CCR de
Programa de Incentivo à Colaboração, ou seja, a delação seria financiada.
O
pagamento da delação poderia ser questionado, e a saída da empresa foi dar a
tal prática uma roupagem legal, já que a legislação brasileira não prevê esse
tipo de combinação. Para isso a CCR contratou os serviços do advogado José Alexandre
Tavares Guerreiro, professor de direito comercial da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, a USP, que elaborou um parecer de quarenta páginas,
entregue ao conselho no dia 10 de janeiro de 2019.
Em
seu parecer, o advogado explica que os membros do conselho e seus assessores
legais ponderaram a importância do acordo de leniência para dar continuidade
aos negócios da empresa e que, sem isso, estariam ameaçados. Alerta para a
necessidade de esse acordo ser feito o mais rápido possível, para evitar que as
concessões da empresa fossem cassadas. Para isso, era preciso convencer os
funcionários a falar. O parecer afirma considera esperado, porém, “que tais
pessoas relutassem em colaborar com a rapidez necessária” e conclui ser
“plenamente coerente” a decisão da diretoria de celebrar o programa de
colaboração. O advogado afirma, no entanto, que no estrito contexto do direito
brasileiro, era preciso buscar uma fundamentação jurídica para firmar tal
acordo. E admite que “pode se considerar inválida, por contrária à ordem
pública, a previsão de que a companhia indenizará o administrador pelos atos
ilícitos dolosos que este venha a praticar no exercício do seu cargo”.
Ou
seja, como pela norma legal o administrador não pode ser indenizado pelos danos
que causou à companhia durante sua gestão, a solução encontrada pela CCR e pelo
advogado Tavares Guerreiro foi demiti-los e, então, pagar a indenização para
que delatassem.
A
Amec, porém, contesta o acerto. Afirma que os minoritários já foram prejudicados
por várias multas, entre elas, 64,5 milhões para o estado de São Paulo, 17
milhões a título de doação para a Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, e, no Paraná, 35 milhões de multa prevista na lei de improbidade e mais
350 milhões a título de redução da tarifa do pedágio. Agora, terão que arcar
com um novo prejuízo de 71 milhões em indenizações, além de ações que possam
surgir contra a empresa. Cunha me disse que já enviou correspondência ao
Ministério Público de São Paulo afirmando que a legislação brasileira determina
que o MP proteja os interesses dos minoritários. O promotor José Carlos Blat,
da Promotoria do Patrimônio Público e Social do Ministério Público de São Paulo
informou à piauí, por meio de sua assessoria, “que não tem influência sobre as
questões internas da empresa”.
Cunha
disse que os minoritários farão de tudo para impedir que os controladores
tenham voto na assembleia que decidirá ou não pela indenização. Já o MPF do
Paraná disse desconhecer que esse tipo de acordo tenha sido feito. Em nota ao
mercado no dia 11 de abril, a CCR divulgou a homologação do acordo de leniência
com a 5ª Câmara Superior do MP Federal no Paraná, onde consta a informação de
que os delatores serão indenizados, embora o MPF do Paraná tenha dito desconhecer
esse acerto.
Renato
Chaves, executivo especialista em governança, também é crítico do acordo. Ele
enviou carta à Comissão de Valores Mobiliários, CVM, o xerife do mercado de
capitais, questionando o acordo e pedindo providências. Em seu blog, o Blog da
Governança, Chaves afirma que os acionistas da CCR foram surpreendidos com mais
um desembolso de caixa e, em tom ácido, critica: “OK, a turma do
colarinho-branco/caneta Mont Blanc resolve a vida com as autoridades na esfera
penal, fica indene, a empresa paga a conta (incluindo minoritários otários, os
famosos minorotários), mas como fica a situação do ‘time’ de gestores na esfera
administrativa? Alguma punição depois de saírem de fininho? Inabilitação na
CVM? E os acionistas controladores? Não sabiam de nada? Tão ingênuos,
praticamente uns tolinhos…”
Os
holofotes sobre o acordo têm a ver com o fato de a empresa ser de capital
aberto, o que a obriga a tornar o acerto público. Foi assim que os acionistas
minoritários souberam do pagamento da indenização. Quando perguntei a Celso
Vilarde, um dos advogados da CCR, como via os protestos dos minoritários contra
esse pagamento, na assembleia de segunda, ele foi direto: “Ou fazemos isso ou a
empresa quebra. Porque sem a leniência ela não poderá mais participar de
concessões públicas, o que é mortal para uma empresa concessionária.” E
provoca: “Os minoritários estão se queixando do pagamento das indenizações.
Será que eles preferem que a empresa vá à falência?” Para ele, está claro que,
nesse caso, a perda para todos será infinitamente maior.
Consuelo
Dieguez, repórter da piauí desde 2007, é autora da coletânea de perfis Bilhões
e Lágrimas, da Companhia das Letras
https://piaui.folha.uol.com.br/delacao-financiada/
Nenhum comentário:
Postar um comentário