domingo, 13 de outubro de 2019

REFLEXÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL EM CASOS DE INFECÇÃO HOSPITALAR. Por Leandro Siciliano Neri e Abner Brandão Carvalho


“Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde (IRAS)” é a expressão que tem sido comumente usada em substituição a “infecções hospitalares”. Parte disto deve-se à abrangência conceitual sofrida nas últimas décadas. Apesar da evolução terminológica, o conceito é basicamente o mesmo, porque no Brasil a Lei 9.431/1997 definiu infecção hospitalar como “qualquer infecção adquirida após a internação de um paciente em hospital e que se manifeste durante a internação ou mesmo após a alta, quando puder ser relacionada com a hospitalização”.

Muito embora já se tenha defendido a desospitalização como alternativa a se evitar a infecção hospitalar, a literatura médica vem demonstrando que as medidas de prevenção a infecções devem ser adotadas também em relação a pacientes em assistência domiciliar.

Trata-se de uma questão de relevância internacional. Estima-se que todo ano cerca de 1,5 milhão de pessoas sejam acometidas de infecção hospitalar no mundo, e que a cada 100 pacientes hospitalizados, 10 experimentem algum tipo de infecção em países em desenvolvimento.

No Brasil, o marco do controle das infecções hospitalares se deu em 1983, com a Portaria 196, do Ministério da Saúde, com a previsão de manutenção de Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) em todos os hospitais do país. Dois anos depois, o presidente eleito Tancredo Neves faleceria, vítima de uma infecção generalizada. Com isso, os projetos em andamento adquiriram destaque, sendo desenvolvida uma política de capacitação de recursos humanos em controle dessas infecções.

No mesmo ano de 1985, fez-se um levantamento das instituições brasileiras que já contavam com CCIH em funcionamento, com elaboração de novos cursos de capacitação e credenciamento de novos centros de treinamento.

O desafio, contudo, era (e ainda é) enorme. Em 1994, o Ministério da Saúde, debruçado sobre 99 hospitais terciários (de alta complexidade), situados nas capitais brasileiras e vinculados ao SUS, estimou em 13% a taxa de pacientes acometidos por infecção hospitalar. A Organização Mundial de Saúde (OMS) teria encontrado prevalência de 8,7%, em estudo em 14 países, no período de 1983-1985.

Este foi o cenário encontrado pela Lei 9.431/1997 (aquela que define infecção hospitalar), editada com o objetivo de tornar obrigatória a manutenção de programa de controle de infecções hospitalares (PCIH) pelos hospitais do país. Programa este que abrangeria um conjunto de ações desenvolvidas com vistas à redução máxima possível da incidência e da gravidade das infecções hospitalares.

No ano seguinte o Ministério da Saúde editou a Portaria 2.616, que revogou a de número 930, de 1992. Esta portaria mencionada já havia revogado a Portaria 196/1983. Ao definir o que comporia o PCIH, a Portaria 2.616/1998 trouxe, em seu artigo 2º, o seguinte reforço à Lei 9.431/1997: “As ações mínimas necessárias, a serem desenvolvidas, deliberada e sistematicamente, com vistas a redução máxima possível da incidência e da gravidade das infecções dos hospitais, compõe o Programa de Controle de Infecções Hospitalares.”

Superado (embora não esgotado) este histórico normativo, retoma-se aquele esforço anteriormente mencionado dos organismos nacionais, voltado ao combate destas infecções, e neste passo importa destacar o Programa Nacional de Prevenção e Controle das Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde (PNPCIRAS), publicado pela Anvisa.

O PNPCIRAS, voltado para o quinquênio de 2016-2020 e elaborado pela Comissão Nacional de Prevenção e Controle de Infecções Relacionadas à Assistência de Saúde (CNCIRAS), traça como meta até 2020, a título de exemplo, a redução de 15% (tendo como paradigma o referenciado em 2015), da densidade de incidência de infecção primária da corrente sanguínea laboratorial (IPCSL). Também existem outras metas relacionadas à adoção de programas e estratégias pelos hospitais.

Segundo o Centers for Disesase Control and prevention, pesquisas mostram que em virtude da adoção de programas para prevenção e controle de IRAS pelos estabelecimentos de assistência à saúde, a redução dos índices de infecção hospitalar pode ocorrer em até 70% para algumas das infecções relacionadas.

Ainda, aproximadamente 20% a 30% das IRAS são consideradas preveníveis, por meio de programas de controle e higiene intensivos, segundo o European Centre for Disease Prevention and Control.

Há que se destacar, outrossim, a imunidade mais fragilizada de alguns pacientes, como idosos, recém-nascidos, aqueles com comprometimento da imunidade ou com diabete mellitus mal controlada; alteração da consciência (com maior risco de aspiração); doenças vasculares (e dificuldade na oxigenação e cicatrização dos tecidos), além de pacientes acamados e os com necessidade de uso de dispositivos invasivos (sonda urinária, cateter venoso, ventilação por aparelhos, etc.).

Já desde 2001 a OMS vem chamando a atenção para uma crescente resistência bacteriana a antimicrobianos, especialmente no que concerne às infecções associadas aos cuidados à saúde.

O que se observa, portanto, é que mesmo que conjugadas forças internacionais e nacionais, de saúde e/ou legislativas, só é possível almejar a redução dos níveis de infecção hospitalar, e ainda assim, a depender, também, de fatores outros como estes acima elencados (organismo do paciente e resistência bacteriana).

Apesar disto, o Superior Tribunal de Justiça vem relacionando a ocorrência de infecção hospitalar à condenação de estabelecimentos prestadores de serviços hospitalares, quase que automaticamente, pela via da responsabilização objetiva (como nos casos: AgInt no REsp 1.472.367/SP, AgInt no AREsp 1.377.652 e Resp 116.372/MG).

Naturalmente, os tribunais de justiça vêm acompanhando a posição da Corte Superior e os julgados a seguir ilustram como o tema infecção hospitalar vem sendo tratado pelo Poder Judiciário. Em julho de 2019, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reformou a sentença de improcedência prolatada nos autos do Processo 0199933-54.2008.8.19.0038. No caso concreto a parte autora buscava ser indenizada por haver sido acometida de uma infecção bacteriana contraída nas dependências do hospital réu.

O laudo pericial destacou que, na ocasião, alguns estados da federação (inclusive o Rio de Janeiro), passavam por um surto epidêmico de micobacteriose, com inúmeros casos notificados às secretarias de saúde. Mais ainda: as respostas aos quesitos formulados pelo hospital deram conta de que os métodos de esterilização adotados pela instituição seguiram os padrões exigidos pela Anvisa e que o hospital comunicou, devidamente, o caso da autora às autoridades competentes.

Muito embora o magistrado de primeira instância tenha julgado improcedentes os pedidos da parte autora, a decisão terminativa foi reformada, sob o argumento de que a infecção hospitalar deveria ser analisada sob a ótica da responsabilidade objetiva, tratando-se de fortuito interno sem condão de afastar a responsabilidade civil do Hospital.

O julgamento desta apelação reflete outro julgado, não tão recente assim, em que o acórdão ressalvava a irrelevante perquirição de conduta culposa pelo hospital, diante de infecção hospitalar por microbactéria, para condenar o nosocômio com base exclusivamente na verificação do evento danoso (Apelação 11070-44.2007.8.19.0202).

Na Apelação 1048240-09.2014.8.26.0100, o TJ de São Paulo reformou a sentença para condenar o hospital e a operadora de plano de saúde, por uma infecção hospitalar atestada pela perícia. O laudo pericial, contudo, deixara claro que a infecção hospitalar não significava, necessariamente, falha no serviço hospitalar, e que no caso concreto tratava-se de intercorrência inerente ao procedimento ao qual a parte autora se submeteu.

A 7ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, ao majorar a condenação, em julgamento da Apelação 0033519-97.2013.8.26.0005, posicionou a infecção hospitalar como uma circunstância previsível e como risco da atividade empresarial.

Não obstante o panorama que acima foi demonstrado, pondere-se que a prestação de serviço médico-hospitalar possui contornos absolutamente distintos das demais atividades sujeitas à aplicação da responsabilidade objetiva e da teoria do risco.

Por oportuno, relevantes os ensinamentos de Miguel Kfouri Neto, para quem a aplicação teoria do risco deve ser repelida nestes casos, na medida em que “redundaria na imposição do dever de indenizar tão só em face do dano e da permanência do enfermo no hospital”.

É claro que o conjunto da prestação do serviço hospitalar é fracionável em atividades que se amoldam à aplicação da responsabilidade objetiva, mas em se tratando de infeção hospitalar, há que se considerar elementos outros que influirão na possível responsabilização do nosocômio – a atividade hospitalar guarda peculiaridade que representa verdadeira reverberação da atividade médica, que é sabidamente limitada.

Por esta atividade ser limitada é que a obrigação do médico é de meio. O sucesso da sua atuação depende diretamente de fatores que vão desde os instrumentos tecnológicos disponíveis na atualidade até as manifestações orgânicas do(a) paciente.

Novamente relevantes as lições de Miguel Kfouri Neto, ao citar o mestre José Aguiar Dias, para quem: “A obrigação médica não é evidentemente obrigação de resultado, o mesmo devendo ser dito da responsabilidade da instituição hospitalar. Não se exige que assuma o dever de curar, de remediar todos os males, de vir a responder pela própria vida do paciente”.

Segundo Matielo ensina, “obrigação de meios é a que vincula o profissional à aplicação diligente de todos os recursos disponíveis para a melhor condução possível do caso clínico que será alvo de seus préstimos”. Ainda acrescenta que “na relação que envolve obrigação de meios o objeto do contrato é a atuação zelosa e tecnicamente correta do médico, mantendo-se dentro dos parâmetros apontados pela ciência.”

Do mesmo modo, a aferição da responsabilidade do hospital, diante da infecção nosocomial, deve considerar os esforços da instituição no sentido da redução das taxas de infecção hospitalar, portanto.

Quanto a estas taxas, aliás, a Portaria 2.616/1998, em seu Anexo III, aponta critérios de cálculos de taxas de infecção hospitalar, de pacientes com infecção hospitalar e de infecções hospitalares por procedimento, cabendo à CCIH elaborar, periodicamente, relatório com indicadores epidemiológicos interpretados e analisados, que será divulgado a todos os serviços e à direção, promovendo o seu debate na comunidade hospitalar.

Em se tratando de números e percentuais, portanto, não há consenso, na medida em que os índices são levantados hospital a hospital. Em 2013, foi conduzida uma pesquisa sobre infecção hospitalar em pacientes operados no Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

A partir do estudo acima mencionado, que contou com a monitorização, por protocolo previamente estabelecido, de 3.120 pacientes operados nas várias clínicas do referido hospital, no período de janeiro de 1999 a outubro de 2002, observou-se taxa de infecção cirúrgica de 5,99%. Os autores comparam estes resultados com os encontrados por Culver, que ao monitorar 84.691 pacientes em 44 hospitais americanos, no período de 1987 a 1990, encontrou taxa de infecção cirúrgica global de 3,7%.

Se é possível dizer que não há consenso acerca dos níveis aceitáveis de infecção hospitalar, também é possível afirmar que há consenso acerca da impossibilidade de se atingir o “zero”.

A responsabilidade civil, conforme se sabe, apoia-se no artigo 927, do Código Civil de 2002, e pressupõe a existência do ato ilícito. Carlos Alberto Bittar ensina que “ato ilícito é o procedimento, comissivo (ação) ou omissivo (omissão, ou abstenção), desconforme à ordem jurídica, que causa lesão a outrem, de cunho moral ou patrimonial”. Ensina Carvalho de Mendonça, também: “Que é ato ilícito? Em sentido restrito, ato ilícito é todo fato que, não sendo fundado em Direito, cause dano a outrem.”

Sobre esse conceito de fundamental relevância para a responsabilidade civil, por ser o seu fato gerador, Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Peixoto Braga Netto apontam que o Código Civil de 2012, em verdade, aperfeiçoou a noção de ato ilícito, constante do artigo 159 do antigo diploma de 1916 — se antes cometia ato ilícito quem violasse direito ou causasse dano a outrem, atualmente, “a obrigação de indenizar decorre (...) da existência da violação de direito e do dano, concomitantemente”.

Assim, a doutrina civilista contemporânea considera o ato ilícito como um fato jurídico, que, por seu turno, consiste em eventos com potencial de repercutir na esfera jurídica, “produzindo diferentes efeitos”. Estes efeitos, ensinam Farias, Rosenvald e Netto, devem ser antijurídicos, ou seja, contrários ao ordenamento jurídico.

Dessa forma, considerando-se que a vontade do legislador tem como objetivo a redução máxima possível dos índices de infecção hospitalar, pela implementação de planos e estratégias de prevenção de IRAS, o hospital que se amolda a todos os requisitos legais, mas, mesmo assim, não consegue evitar a incidência de infecção hospitalar, não age em desconformidade com o ordenamento jurídico.

Neste sentido, sóbrio julgado foi prolatado no Processo 0068836-02.2012.8.26.0100, em ação que tramita na 26ª Vara Cível do Foro Central Cível de São Paulo. No caso concreto a parte autora alegava que em razão de um procedimento cirúrgico fora acometida por infecção hospitalar, o que agravara o seu quadro clínico — tendo sido necessária a indução ao coma e a estadia em internação, por dois meses, em unidade de tratamento intensivo. Ao final do tratamento, contudo, teria sido constatado infarto ósseo, o que dava azo a fortes dores no joelho direito.

O laudo pericial, confeccionado por infectologista, constatou a ocorrência da infecção hospitalar, afirmando que “a ocorrência de uma infecção hospitalar não indica, necessariamente, que o hospital ou sua equipe tenha cometido um erro na assistência prestada ao paciente”. Ainda concluiu a perita oficial do juízo que “as medidas preventivas atuais não conseguem evitar todas as Infecções Relacionadas à Assistência a Saúde (IRAS)”.

O que se observa neste caso em específico é, precisamente, a ponderação necessária em casos que envolvam infecção hospitalar, para que os dispositivos legislativos nacionais, bem como as normas técnicas de saúde sejam prestigiados.

Necessária a reflexão, portanto, de que em um cenário de infecção relacionada a assistência à saúde, comprovado que a instituição hospitalar cumpriu as normas relacionadas à regulação sanitária, no que toca à prevenção, fiscalização e controle de IRAS, não há que se falar em dever de indenizar pela prática de ato contrário ao ordenamento jurídico (ato ilícito), afastando a teoria do risco, sob pena de serem ignoradas as conclusões técnicas já alcançadas pelos organismos internacionais e nacionais de saúde, no que toca a inevitabilidade da infecção hospitalar, em maior ou menor percentual.

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Leandro Siciliano Neri é advogado.

Abner Brandão Carvalho é advogado.

Revista Consultor Jurídico


“PROCESSO CONTRA LULA FOI FARSA QUE COMEÇOU PELO FIM: A CONDENAÇÃO”. Por Marco Aurélio Carvalho

O jurista Marco Aurélio Carvalho, que integra o movimento Juristas pela Democracia, falou à TV 247 sobre a prisão política do ex-presidente Lula, que já dura quase um ano e seis meses. Para Marco Aurélio, o processo contra Lula começou pelo final, ou seja, tinha um objetivo claro pela condenação desde o início.

Ele explica que a finalidade do processo contra o ex-presidente era tirá-lo da disputa eleitoral em 2018. “Nesse caso, evidentemente, o processo é uma farsa. Ele começou pelo final. O resultado era: ‘precisamos tirar o Lula das eleições’, esse era o objetivo final, começou por aí e montaram toda a farsa”.

O jurista complementou ressaltando que ninguém poderá devolver os dias perdidos na prisão a Lula e lembrou que o ex-presidente foi aprisionado sem que seu processo estivesse encerrado, ou seja, ainda cabiam recursos. “Esses 500 dias que ele passou aprisionado em Curitiba não serão devolvidos para ele, essa é a grande verdade. Não haveria prejuízo nenhum em aguardar o trânsito em julgado para, eventualmente, executar a pena”.
Vaza Jato

Marco Aurélio comentou as revelações do site The Intercept, que divulga há meses diálogos entre procuradores da Lava Jato e o então juiz da operação, Sérgio Moro, na série apelidada de ‘Vaza Jato’. Para ele, estas provas, já que obtidas de forma ilícita, não podem ter efeito condenatório, mas podem e devem ser utilizadas para absolver o ex-presidente Lula.

“Essas provas devem ser utilizadas em favor do réu, que foi injusta e criminosamente acusado. No caso, por exemplo, do presidente Lula eu não tenho nenhuma dúvida quanto a isso, essas provas têm de ser utilizadas, sim, inclusive para confirmar a perseguição que ele sofreu e a prisão injusta e criminosa da qual ele é vítima ainda hoje”.
STF e Lula Livre

Carvalho falou também do papel do Supremo Tribunal Federal (STF) no processo de soltura do petista. Para ele, a Corte está retomando sua postura prevista na Constituição de 88, o que pode beneficiar Lula. “O Supremo, aos poucos, está voltando a ter o papel contramajoritário para o qual ele foi desenhado pela Carta de 88. Ao Supremo não cabe buscar louros, aplausos e reconhecimento público, muito pelo contrário. Ao Supremo cabe a função contramajoritária de dizer o direito, contra, inclusive, se for o caso, contra a opinião pública”.

Ele explicou que Lula pode ser libertado por dois caminhos: a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro e de todos os processos que julgou, ou pelo julgamento das Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade (ADIs) da presunção de inocência. “Temos duas grandes oportunidades para que o Lula seja, enfim, efetivamente devolvido aos braços da população”.