A
história é um carro alegre
Cheio
de um povo contente
Que
atropela indiferente
Todo
aquele que a negue
Chico
Buarque e Pablo Milanes
Os
monstros saíram novamente do armário. Poderia ser mais uma história de ficção,
se tudo não estivesse registrado em relatórios oficiais da CIA, da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e da Comissão Nacional da Verdade. Seria
uma viagem ao passado se aquela tragédia de 1964 não tivesse sido transformada
numa grande farsa. Afinal, houve um golpe civil-militar no Brasil? Será que
havia uma ameaça comunista em 1964? É preciso desmitificar essas narrativas dos
militares de plantão e colocar argumentos baseados em fatos fáceis de comprovar
(uma pesquisa rápida no Google) na ordem dos acontecimentos e nos seus devidos
lugares.
Assim,
este artigo propõe uma busca pela verdade por meio de 21 pequenas reflexões que
possam contribuir para esclarecer as novas gerações, os mentirosos e os
desmemoriados sobre os 21 anos de regime militar no Brasil:
1.
O governo João Goulart foi derrubado com uma forte oposição no parlamento e na
grande mídia da época (rádios e jornais) e com pouquíssima resistência popular.
Goulart era um advogado proprietário de terras no Rio Grande do Sul e queria
fazer no Brasil o que a Europa e os EUA já tinham realizado havia mais de 150
anos: fortalecimento da indústria nacional, reforma agrária para fixar as
famílias no campo, aumentar e diversificar a produção de alimentos,
redistribuição de renda, aprovação de uma legislação de caráter trabalhista,
ampliação da oferta de educação gratuita e de qualidade, além de outras
reformas burguesas e democráticas;
2.
Um pouco antes, em 1959, a sociedade conservadora e conspiradora havia criado o
Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que teve dois braços de
atuação política: a) a PROMOTION S/A, uma agência de publicidade encarregada de
disseminar a propaganda política nas estações de rádio, jornais, revistas e
canais de televisão; b) a Ação Democrática Popular (ADEP), encarregada de
financiar as campanhas eleitorais e eleger os seus representantes nos
legislativos e governos de todo o país. Os recursos provinham da CIA, de
empresas multinacionais ou “nacionais” associadas ao capital estrangeiro. Em 1961, foi criado o Instituto de Pesquisas
e Estudos Sociais (IPES), que reunia a elite do empresariado brasileiro,
diretores de empresas multinacionais, dirigentes das associações empresariais,
militares, jornalistas, intelectuais, mulheres conservadoras e jovens
tecnocratas;
3.
Assim como nos dias atuais, para explorar o povo e vender as riquezas do país,
essas organizações formaram o núcleo conspirador do golpe e utilizaram as
bandeiras anticorrupção e de ameaça do comunismo, pois assim elas conseguiam
desviar a atenção e amedrontar as pessoas que não estavam bem informadas sobre
as disputas em curso. No final de 1963, estava formado um cenário de
polarização política e o governo Goulart não conseguia aprovar mais nada no
Congresso;
4.
O partido que tinha a maior base eleitoral entre os operários urbanos e os
pequenos e médios agricultores era o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),
criado por Getúlio Vargas. O seu programa propunha principalmente o
desenvolvimento industrial, a nacionalização dos recursos naturais e mais
investimentos em educação pública;
5.
A luta armada estava fora dos planos dos partidos de esquerda. Os dois partidos
comunistas (PCB e PCdoB) defendiam uma revolução democrática burguesa e
anti-imperialista no Brasil que, segundo alguns clássicos do marxismo, seria
uma etapa necessária para a industrialização do país e assim criar uma classe
operária, para depois lutar pelo socialismo;
6.
O mundo vivia um período de Guerra Fria, com intensas disputas econômicas,
diplomáticas e ideológicas entre os EUA e a URSS, e pela conquista de
territórios;
7.
Havia movimentos pela reforma agrária, como as Ligas Camponesas, no nordeste, e
a entrega de títulos a agricultores sem terra, no Rio Grande do Sul. Também
foram realizadas algumas estatizações de empresas norte-americanas, como foram
os casos da Light, ITT, Bond and Share,
entre outras;
8.
Em 1962, o presidente João Goulart assinou a Lei da Remessa de Lucros, que
limitava o envio do lucro das empresas estrangeiras para o exterior, mas a
regulamentação da lei só ocorreu no início de 1964 (apenas dois meses antes do
golpe);
9.
A ditadura militar acabou com os partidos políticos, cassou 173 deputados e
retirou os direitos políticos de 509 opositores e decretou uma forte censura à
imprensa e às artes em geral. Foi criada a Operação Bandeirante (Oban), um
centro de informações e investigações, e
o DOI-Codi, um órgão de repressão (e tortura) à opositores políticos;
10.
Foi implementada uma reforma educacional de conteúdo ideológico e tecnicista,
tanto no ensino básico como no ensino superior. As universidades foram
enquadradas no famigerado acordo MEC-USAID (United States Agency for
International Development) que fragmentou as faculdades e perseguiu os
estudantes que se organizavam para
resistir;
11.
Milhares de pessoas foram exiladas, políticos, professores, militares e
servidores públicos foram cassados e centenas de “opositores” foram mortos e
“desaparecidos” pela ação de grupos militares e paramilitares;
12.
A Rede Globo foi fundada um ano após o golpe e cumpriu um papel de padronização
ideológica da “opinião pública”, em todo o território nacional;
13.
As ações armadas de pequenos grupos de esquerda ocorreram bem depois do golpe,
principalmente após 1969, quando os generais decretaram o Ato Institucional Nº
5, o AI-5 (em 1968), que acabou com todos os direitos civis constitucionais,
proibindo reuniões, manifestações, revogando o habbeas corpus e permitindo
prender sem um
devido
processo legal;
14.
Com o auxílio da CIA, os militares brasileiros exportaram golpes de Estado e
métodos de tortura para outros países da América do Sul (Uruguai e Chile, em 1973,
e Argentina, em 1976) e, apesar da farta documentação e provas, até hoje não
foram condenados por estes crimes;
15.
Os governos militares abriram as portas para a exploração das riquezas naturais
do Brasil e dos demais países de Nuestramérica, para a implantação empresas
multinacionais, com o objetivo de exportar a matéria-prima e se beneficiar de
mão-de-obra barata;
16.
A dívida do Brasil com o Fundo Monetário Internacional (FMI) cresceu
vertiginosamente, com juros exorbitantes, pois o plano dos golpistas exigia
investimentos em infraestrutura para a instalação de empresas estrangeiras e
para tornar o país ainda mais dependente;
17.
O general Golbery do Couto e Silva, por exemplo, um dos cérebros do regime
militar, formulou a Doutrina de Segurança Nacional, que buscava o alinhamento
do Brasil com os EUA e a luta contra o “inimigo interno”, criou o Serviço
Nacional de Inteligência (SNI) e, por estranha coincidência, presidiu a filial
da empresa norte-americana Dow Chemical para toda a América Latina, uma das
maiores fabricantes de agrotóxicos do mundo. Só para ter uma ideia, em 2015, a
Dow Chemical uniu-se à Du Pont, ampliando os seus negócios na área de plásticos
e sementes, ultrapassando o faturamento da Monsanto;
18.
As empresas brasileiras nas áreas de energia, da construção civil e do
agronegócio foram a que mais enriqueceram, pois desde aquele tempo elas
estiveram sintonizadas com a estratégia de dominação norte-americana;
19.
Com a priorização do agronegócio, milhões de famílias foram expulsas do campo e
formaram imensos cinturões de miséria nas pequenas, médias e grandes cidades.
De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2015),
atualmente 84,72% da população brasileira vivem em áreas urbanas e apenas
15,28% vivem em áreas rurais. A região Sudeste possui o maior percentual de
população urbana (93,14%) e a região Nordeste conta com o maior percentual de
habitantes vivendo em áreas rurais (26,88%);
20.
Os principais lemas dos governos militares eram “Exportar é o que importa!”,
“Primeiro crescer para depois dividir” e “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Tratava-se
de um plano internacional de dominação norte-americana, inserido num mundo que
já estava se globalizando;
21.
Com a crise internacional do petróleo, a partir de 1973, com a alta
significativa no custo de vida, o arrocho salarial e a inflação fora de
controle, e com a denúncia de vários casos de corrupção, o regime militar
começou a perder apoio político-eleitoral em vários estados brasileiros. Apesar
das diversas manobras casuísticas, foram obrigados a promover uma “distensão
lenta, gradual e segura”: em 1979 houve uma anistia parcial (os militares
envolvidos em tortura também foram anistiados), a volta dos exilados e a
liberdade partidária, em 1985, a eleição de um governo civil, via colégio
eleitoral (Congresso Nacional), em 1988, o fim da censura prévia, com a
promulgação da nova Constituição Federal e eleições diretas para presidência da
República somente em 1989, 25 anos após o golpe.
É
importante reconhecer que no período militar houve um longo processo de
industrialização (globalizada) no Brasil e que, contraditoriamente, na década
de 70 e 80, intensificaram-se amplos movimentos de resistência operária e
popular, de diversas organizações sindicais, estudantis, agrárias e
profissionais que lutaram por melhores condições de vida, por justiça social e
pela volta da democracia. Ao mesmo tempo, a juventude brasileira respirou ares
de rebeldia vindos dos protestos contra a Guerra do Vietnã e do Festival de
Woodstock, nos EUA, e das manifestações do Maio de 68, na França.
Existem
diversos livros e uma farta documentação oficial que comprovam essas
afirmações, mas é preciso remexer mais fundo no passado para combater os
mal-intencionados, pois o golpe de 1964 não passou de um plano de dominação
econômica, política e cultural do capitalismo internacional. Qualquer
semelhança com os dias de hoje não é mera coincidência, pois ainda há uma
orquestração por parte dos EUA, na qual a Rede Globo cumpre o seu papel
ideológico estratégico e o STF foi transformado num enfeite institucional. No
entanto, existem importantes diferenças: a sociedade civil está mais
organizada, há uma intensa troca de informações em âmbito nacional e
internacional, graças à internet, e existe uma forte resistência de vários
países à violação dos direitos humanos e à apologia aos crimes de Estado.
Como
as novas gerações possuem muito mais informações do que as que viveram em 1964
e a recente experiência democrática ainda está latente na memória do povo brasileiro,
pode ser que ocorra uma multiplicação dessas reflexões nas reuniões familiares,
nos condomínios, nas associações de bairros, nos sindicatos, nas organizações
profissionais e nos diferentes coletivos. Se for assim, talvez num futuro
próximo possamos deixar para trás mais um período triste da história do Brasil,
e desta vez, quem sabe, com o julgamento e a condenação dos vendilhões da
Pátria.
Para
finalizar, é bom lembrar que o golpe civil-militar ocorreu no dia 1º de abril –
Dia dos Bobos ou da Mentira – e não no dia 31 de março, como dizem as pessoas
mal informadas. Em nenhum desses dias existe algo a ser comemorado, muito pelo
contrário… Mas é preciso refletir junto a quem não viveu ou esqueceu este
passado, sob pena de ficarmos preso a ele, mas também para nos libertarmos das
mordaças, dos traumas e das mentiras que voltaram a ser repetidas.
P.S.
Este artigo não tem a intenção de esgotar a reflexão sobre o golpe de 1964, e
sim a de compartilhar um roteiro de pequenas memórias coletadas junto a um
grupo de amigos e amigas, via Whatsapp. Está sendo publicado em memória do
jornalista Vladimir Herzog, do metalúrgico Manuel Fiel Filho, do estudante
Edson Luis de Lima Souto e de tantos outros brasileiros e brasileiras que foram
assassinados e/ou permanecem “desaparecidos”.
(*) Consultor em
Gestão Projetos TIC
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