Há
51 anos, em 28 de março de 1968, morria no Rio de Janeiro o secundarista Edson
Luis, um dos primeiros estudantes assassinados pela ditadura militar
(1964-1985). A comoção em torno de seu tombamento levou dezenas de milhares de
pessoas às ruas e escancarou o crescente repúdio da sociedade ao regime imposto
pelo Golpe de 64. André Cintra e Raisa Marques reconstituíram o caso no livro
Ubes, Uma Rebeldia Consequente – A História do Movimento Estudantil
Secundarista do Brasil (2009). Confira.
Uma morte, o estopim
Com
a morte de um estudante secundarista, o povo sai às ruas e manifesta seu
repúdio à ditadura
Por André Cintra e Raisa
Marques*
Os
grandes conflitos entre a ditadura militar brasileira e o movimento estudantil
em 1968 têm como estopim a morte de um secundarista, Edson Luís de Lima Souto,
no Rio de Janeiro. É um episódio-chave na história das lutas estudantis em
geral e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) em particular.
“A
reação à morte do Edson Luís foi de uma amplitude, de uma radicalidade que
ninguém imaginava, mesmo os que achavam que o ano seria de mobilizações”,
declarou, em entrevista ao projeto Memória do Movimento Estudantil (MME), o
economista Jean Marc von der Weid, que foi eleito presidente da UNE em 1969.
“Rapidamente a gente percebeu o potencial de mobilização para além da
universidade — até porque o Edson Luís não era universitário, mas
secundarista.”
O Calabouço
Edson
Luís foi assassinado durante uma manifestação em frente ao Restaurante Central
dos Estudantes, num prédio do centro do Rio de Janeiro (RJ). Conhecido como
Calabouço, por ter abrigado escravos presos no Império, o enorme restaurante
era uma espécie de patrimônio dos estudantes, custeado pelo Ministério da
Educação (MEC).
“Aquela
comida de bandejão era muito ruim. Mas havia uma coisa boa: aquela garotada
pobre que circulava por ali, perto do centro da cidade, podia almoçar por um
preço muito baixo, como se fosse um restaurante universitário, só que fora da
universidade”, lembra, também ao MME, o jornalista Bernardo Joffily,
ex-vice-presidente da Ubes (1968). “Uma pessoa se inscrevia lá, ganhava uma
carteirinha e podia almoçar no Calabouço. Como juntava 10 mil estudantes por
dia, inevitavelmente, se transformou num centro de efervescência estudantil.”
De
fato, o restaurante tinha fama de servir refeições horríveis, mas a preços
extremamente baixos, “qualquer coisa assim como centavos”, segundo Bernardo
Joffily. “Eram milhares de estudantes naquele galpão enorme — e, de repente, um
estudante subia na cadeira e dizia: ‘Companheiros, acabo de descobrir uma
barata aqui na sopa, no meu feijão, na minha bandeja’. E aí todo mundo batia
com os garfos. Já era combinado, todo mundo já sabia, não precisava ninguém
explicar. Todos batiam com os garfos nas bandejas, faziam aquela barulhada
imensa em protesto contra a barata descoberta.”
O
Calabouço, de qualquer maneira, foi adotado pela estudantada. Para se ter uma
ideia de sua importância, um grupo de frequentadores, liderado por Elianor
Brito, criou a Feuc (Frente Unida dos Estudantes do Calabouço), com o objetivo
de melhorar as condições de funcionamento do restaurante. No governo do
general-presidente Costa e Silva (1967-1969), os subsídios do MEC para o
projeto minguaram, a tal ponto que, em setembro de 1967, uma ampla reforma do
Calabouço foi interrompida sem anúncio nem explicações.
Além
disso, os militares ameaçavam demolir o prédio para a construção de um viaduto.
Em resposta, os estudantes realizaram vários protestos durante meses. Uma
dessas manifestações ocorreu na noite de 28 de março de 1968, uma quinta-feira.
Cerca de 600 estudantes discutiam os detalhes de uma passeata agendada para o
dia seguinte, que reivindicaria melhorias para o Calabouço e o fim da ditadura.
Mas a Polícia Militar (PM), avisada de antemão, cercou o restaurante em clima
de guerra, imaginando que os manifestantes tacariam pedras na embaixada
americana.
O massacre
Com
seis carros ao redor do local, os policiais já chegaram com cassetetes em mãos.
“Vão lá e quebrem tudo”, tinha ordenado o tenente Alcindo Costa. De repente,
começaram os tiros — o Calabouço era metralhado sem parar. “Ao lado do galpão
do restaurante funciona o Instituto Cooperativa de Ensino, onde é ministrado um
curso do artigo 99 (Madureza). No momento da invasão estava sendo dada aula de
Geografia. O professor protestou e foi espancado pelos policiais”, registrou a
Folha de S.Paulo.
Uma
bala perdida atingiu o comerciário Telmo Matos Henrique, que estava num prédio
vizinho. Dois estudantes também foram atingidos — o próprio Edson Luís, no
peito, e também Benedito Frasão Dutra, no braço e na cabeça. Dezenas de pessoas
estavam feridas. Quando o massacre policial acabou, Edson Luís e Benedito foram
levados à Santa Casa de Misericórdia, que ficava a três quarteirões de distância.
Nenhum deles sobreviveu.
Benedito
foi internado em estado grave, permaneceu em coma na UTI (Unidade de Terapia
Intensiva) e morreu no dia seguinte, aos 20 anos. Edson Luís chegou ao hospital
já sem vida, vítima de um tiro à queima-roupa, que saiu da arma calibre 45 do
comandante da tropa, aspirante a PM Aloísio Raposo. Um assassinato com a marca
da covardia contra um jovem e indefeso estudante.
Em
O Poder Jovem, Arthur Poerner descreveu o secundarista morto, filho de uma
lavadeira, como “um menino ainda — completara 18 anos em 20 de fevereiro —,
parecia baixinho, a pele morena e os cabelos bem pretos e lisos de caboclo
nortista. Os dentes — tinha-os estragado, como a maioria dos jovens do nosso
país. Órfão de pai, viera, havia três meses, de Belém do Pará, para cursar o
artigo 99 do 1º ciclo (uma espécie de supletivo) no Instituto Cooperativo de
Ensino, anexo do Calabouço, onde passava a maior parte do dia, inclusive
auxiliando em serviços burocráticos de secretaria e de limpeza do
estabelecimento, pois não conseguira emprego”.
Edson,
segundo Bernardo Joffily, “era uma pessoa meio que adotada pelo movimento. Não
era uma liderança, mas uma pessoa muito querida. Foi morto porque estava numa
passeata contra o fechamento de um restaurante estudantil — essa é a moral da
história”.
O Rio vela Edson Luís
Os
estudantes que esperavam na Santa Casa decidiram sair com o corpo de Edson Luís
pelas ruas e denunciar o crime — mais um — cometido pela ditadura contra o
movimento estudantil. O povo se sensibilizou de imediato, segundo Jean Marc von
der Weid: “A mobilização que se fez em torno disso, se fez dirigida para a
classe média da Zona Sul. Fui eu que inventei a fórmula de parar os espetáculos
em todos os teatros da Zona Sul para fazer a denúncia do assassinato do Edson
Luís. Parei pessoalmente seis teatros e alguns cinemas. No começo, fazíamos com
certa hesitação, mas depois fomos adquirindo confiança e as pessoas aderiam.
Claro, havia sempre um sujeito que exigia o seu dinheiro de volta, brigava”.
Uma
desses acontecimentos foi marcante para o ex-dirigente estudantil. “Uma vez,
quando a gente paralisou o Teatro Princesa Isabel, um coronel se levantou e
disse que prenderia a gente. O público vaiou. A peça Roda Viva estava sendo
apresentada nesse dia, e eu comecei a fazer uma denúncia dramática do
assassinato do Edson Luís. De repente, Marieta Severo explode em soluços ao meu
lado”, detalha Von der Weid.
O
corpo do estudante morto foi conduzido até a antiga sede da Assembleia
Legislativa da Guanabara, na Cinelândia. Impedidos pela multidão de entrarem,
agentes da PM e do Dops (Departamento de Ordem Política e Social) ameaçavam
lançar bombas de gás. Faltou-lhes coragem. Nas ruas, a mobilização e os
protestos continuavam. O governador Negrão de Lima mandou soltar os 14
estudantes presos na passeata e suspendeu as aulas em todos os estabelecimentos
de ensino. A essa altura, as inúmeras faculdades do Rio já estavam em greve.
“As
pessoas começaram a entrar noite adentro. Circulavam em bares da Zona Sul,
faziam discurso e passavam o chapéu para recolher dinheiro para fazer o enterro
do Edson Luís. Foi um agito generalizado”, diz Jean Marc. Segundo Bernardo, “a
escadaria (da Assembleia) se transformou num palanque. As pessoas chegando, as
escolas e faculdades fechando espontaneamente, e toda aquela massa de gente
indo para a Cinelândia se somar ao velório”.
Um ato contra a ditadura
Dentro
da Assembleia, o corpo de Edson foi posto sobre a Mesa Diretora e coberto pela
bandeira nacional, por cartazes de protesto e por um caderno do próprio
estudante. Dois médicos fizeram então a autópsia, acompanhados do secretário
estadual de Saúde. Lideranças de diversas entidades clandestinas discursavam.
Ao lado do caixão, proliferavam faixas com palavras-de-ordem, como
“Assassinaram um estudante. Poderia ser seu filho” e “Brasil, seus filhos
morrem por você”.
Segundo
o jornal O Dia, “até às 15 horas, os estudantes haviam recebido, de donativos,
três mil cruzeiros novos, que se destinarão à construção de uma estátua, em
homenagem ao morto, em frente ao Restaurante Central dos Estudantes. O
restante, segundo ficou deliberado, seria enviado à família do estudante, em
Belém do Pará e custearia os funerais, pois foi recusado o oferecimento do
governo estadual”.
Ao
fim da tarde de 29 de março, assistiu-se a uma das maiores mobilizações da
história do Brasil até então. Milhares de pessoas faziam fila para velar o
corpo de Edson Luís. Artistas, sindicalistas e intelectuais compareciam. Na
presença de ao menos 60 mil pessoas, o corpo de Edson Luís fez seu último
trajeto. “Coberto pela bandeira nacional, o caixão desceu as escadarias da
Assembleia sob os acenos de milhares de lenços. O povo entoava o Hino Nacional.
Do alto dos edifícios caíam pétalas de flores e papéis picados. A multidão
gritava ‘Desce! Desce’ para que os que, nas janelas, se limitavam a içar
bandeiras negras. Muitos desciam e se integravam ao acompanhamento”.
Foram
mais de três horas de um cortejo inesquecível até o Cemitério São João Batista.
Anoitecia e, para ofuscar o protesto, autoridades deixaram de acionar parte da
iluminação pública. De nada adiantou. Velas e lanternas carregadas pelas
pessoas iluminavam a passeata. “A gente parou em frente ao prédio da UNE para
fazer uma reverência. O prédio da UNE, que tinha sido fechado pela ditadura e
não estava funcionando. Foi um dos momentos mais emocionantes. Lembro também
que já estava escurecendo e algum dono de mercearia teve a ideia de doar todo o
estoque de velas que ele tinha”, afirma Bernardo.
Jean
Marc agrega: “A manifestação no enterro do estudante foi absolutamente
monumental. Há quem fale de cem mil na manifestação posterior. Certamente não
havia cem mil. Mas no enterro, sim. Foi uma imensa manifestação, com um
itinerário enorme, do centro da cidade até o Cemitério São João Batista, com
muita mobilização de gente. Foi um marco. O ano político começou com esse
fato”.
De
acordo com Bernardo, Edson Luís “não foi o primeiro morto da ditadura militar,
mas foi, digamos assim, o primeiro morto público da ditadura militar. Eu
acredito que, naquele dia, o Brasil aprendeu melhor o que era o regime”. Para
Artur Poerner, “foi o momento de apogeu do movimento estudantil. Os estudantes
eram, naquele momento, a vanguarda da resistência à ditadura militar”.
A missa
O
impacto do cruel assassinato de Edson Luís se estendeu e irritou os militares.
Manifestações contra a ditadura se alastraram, culminando com os protestos de
1º de abril, no aniversário de quatro anos do Golpe de 1964. A polícia,
orientada a descer o pau, foi ao ataque e deixou dois mortos (sendo um
estudante), 60 feridos e 321 presos só no Rio de Janeiro. Tropas do Exército,
da Marinha e da Aeronáutica ocuparam a cidade. A Universidade de Brasília foi
ocupada por estudantes. Houve atos também em Goiás e em São Paulo, onde 4 mil
estudantes se reuniram na Faculdade de Medicina da USP.
Em
4 de abril, o Exército escalou seus milicos em vários cantos do Rio de Janeiro
para “prevenir distúrbios”. Mesmo assim, centenas de pessoas se achegaram pela
manhã à Igreja de Nossa Senhora da Candelária, no centro carioca, para celebrar
a missa de sétimo dia de Edson Luís. Foi outro pretexto para a violência do
regime se deitar sobre uma massa indefesa de pessoas. A cavalaria da PM invadiu
a igreja, e os agentes encheram estudantes e religiosos de golpes de sabre.
Chocado
com a perversidade do regime, o vigário-geral dom José de Castro Pinto
desobedeceu às ordens dos militares. No mesmo dia, à noite, ele realizou outra
missa, desta vez para 600 pessoas. Na saída, os padres escoltaram os presentes
até a Avenida Rio Branco. Foi depois desse ponto que a truculência da manhã
ressurgiu, ainda mais grave, com direito a rajadas de metralhadora e bombas de
gás. Até os fuzileiros navais foram convocados para liquidar a celebração a Edson
Luís. Por sorte, não houve mortes — apenas feridos. Duas semanas depois, os
militares proibiram eleições em 68 municípios, considerados “áreas de segurança
nacional”.
No
“calor da hora”, a Ubes realizou, de 21 a 24 de abril de 1968, o 20º Congresso
Nacional dos Estudantes Secundários, em Belo Horizonte. Cerca de 140 delegados
compareceram ao encontro, que prestou homenagem a Edson Luis e também ao
guerrilheiro Ernesto “Che” Guevara, líder da Revolução Cubana (1959), morto
pelo Exército boliviano em outubro de 1967. A nova diretoria foi encabeçada
pelo pernambucano Marcos Antonio Machado de Mello e por seu vice, o próprio
Bernardo Joffily. Nenhum deles poderia imaginar que a repressão daqueles dias
seria ainda mais intensificada – e faria outros tantos mártires do movimento
estudantil como Edson Luís.
* André Cintra,
jornalista, é membro da direção municipal do PCdoB de São Paulo (SP). Raisa
Marques é mestranda em História do Brasil pela Universidade Salgado de
Oliveira. Foi membro da diretoria executiva da Ubes por duas gestões
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