“Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde (IRAS)” é a
expressão que tem sido comumente usada em substituição a “infecções
hospitalares”. Parte disto deve-se à abrangência conceitual sofrida nas últimas
décadas. Apesar da evolução terminológica, o conceito é basicamente o mesmo,
porque no Brasil a Lei 9.431/1997 definiu infecção hospitalar como “qualquer
infecção adquirida após a internação de um paciente em hospital e que se
manifeste durante a internação ou mesmo após a alta, quando puder ser
relacionada com a hospitalização”.
Muito embora já se tenha defendido a desospitalização como
alternativa a se evitar a infecção hospitalar, a literatura médica vem
demonstrando que as medidas de prevenção a infecções devem ser adotadas também
em relação a pacientes em assistência domiciliar.
Trata-se de uma questão de relevância internacional.
Estima-se que todo ano cerca de 1,5 milhão de pessoas sejam acometidas de
infecção hospitalar no mundo, e que a cada 100 pacientes hospitalizados, 10
experimentem algum tipo de infecção em países em desenvolvimento.
No Brasil, o marco do controle das infecções hospitalares
se deu em 1983, com a Portaria 196, do Ministério da Saúde, com a previsão de
manutenção de Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) em todos os
hospitais do país. Dois anos depois, o presidente eleito Tancredo Neves
faleceria, vítima de uma infecção generalizada. Com isso, os projetos em
andamento adquiriram destaque, sendo desenvolvida uma política de capacitação de
recursos humanos em controle dessas infecções.
No mesmo ano de 1985, fez-se um levantamento das
instituições brasileiras que já contavam com CCIH em funcionamento, com
elaboração de novos cursos de capacitação e credenciamento de novos centros de
treinamento.
O desafio, contudo, era (e ainda é) enorme. Em 1994, o
Ministério da Saúde, debruçado sobre 99 hospitais terciários (de alta
complexidade), situados nas capitais brasileiras e vinculados ao SUS, estimou
em 13% a taxa de pacientes acometidos por infecção hospitalar. A Organização
Mundial de Saúde (OMS) teria encontrado prevalência de 8,7%, em estudo em 14
países, no período de 1983-1985.
Este foi o cenário encontrado pela Lei 9.431/1997 (aquela
que define infecção hospitalar), editada com o objetivo de tornar obrigatória a
manutenção de programa de controle de infecções hospitalares (PCIH) pelos
hospitais do país. Programa este que abrangeria um conjunto de ações
desenvolvidas com vistas à redução máxima possível da incidência e da gravidade
das infecções hospitalares.
No ano seguinte o Ministério da Saúde editou a Portaria
2.616, que revogou a de número 930, de 1992. Esta portaria mencionada já havia
revogado a Portaria 196/1983. Ao definir o que comporia o PCIH, a Portaria
2.616/1998 trouxe, em seu artigo 2º, o seguinte reforço à Lei 9.431/1997: “As
ações mínimas necessárias, a serem desenvolvidas, deliberada e
sistematicamente, com vistas a redução máxima possível da incidência e da
gravidade das infecções dos hospitais, compõe o Programa de Controle de
Infecções Hospitalares.”
Superado (embora não esgotado) este histórico normativo,
retoma-se aquele esforço anteriormente mencionado dos organismos nacionais,
voltado ao combate destas infecções, e neste passo importa destacar o Programa
Nacional de Prevenção e Controle das Infecções Relacionadas à Assistência à
Saúde (PNPCIRAS), publicado pela Anvisa.
O PNPCIRAS, voltado para o quinquênio de 2016-2020 e
elaborado pela Comissão Nacional de Prevenção e Controle de Infecções
Relacionadas à Assistência de Saúde (CNCIRAS), traça como meta até 2020, a
título de exemplo, a redução de 15% (tendo como paradigma o referenciado em
2015), da densidade de incidência de infecção primária da corrente sanguínea
laboratorial (IPCSL). Também existem outras metas relacionadas à adoção de
programas e estratégias pelos hospitais.
Segundo o Centers for Disesase Control and prevention,
pesquisas mostram que em virtude da adoção de programas para prevenção e
controle de IRAS pelos estabelecimentos de assistência à saúde, a redução dos
índices de infecção hospitalar pode ocorrer em até 70% para algumas das
infecções relacionadas.
Ainda, aproximadamente 20% a 30% das IRAS são consideradas
preveníveis, por meio de programas de controle e higiene intensivos, segundo o
European Centre for Disease Prevention and Control.
Há que se destacar, outrossim, a imunidade mais
fragilizada de alguns pacientes, como idosos, recém-nascidos, aqueles com
comprometimento da imunidade ou com diabete mellitus mal controlada; alteração
da consciência (com maior risco de aspiração); doenças vasculares (e
dificuldade na oxigenação e cicatrização dos tecidos), além de pacientes
acamados e os com necessidade de uso de dispositivos invasivos (sonda urinária,
cateter venoso, ventilação por aparelhos, etc.).
Já desde 2001 a OMS vem chamando a atenção para uma
crescente resistência bacteriana a antimicrobianos, especialmente no que
concerne às infecções associadas aos cuidados à saúde.
O que se observa, portanto, é que mesmo que conjugadas
forças internacionais e nacionais, de saúde e/ou legislativas, só é possível
almejar a redução dos níveis de infecção hospitalar, e ainda assim, a depender,
também, de fatores outros como estes acima elencados (organismo do paciente e
resistência bacteriana).
Apesar disto, o Superior Tribunal de Justiça vem
relacionando a ocorrência de infecção hospitalar à condenação de
estabelecimentos prestadores de serviços hospitalares, quase que
automaticamente, pela via da responsabilização objetiva (como nos casos: AgInt
no REsp 1.472.367/SP, AgInt no AREsp 1.377.652 e Resp 116.372/MG).
Naturalmente, os tribunais de justiça vêm acompanhando a
posição da Corte Superior e os julgados a seguir ilustram como o tema infecção
hospitalar vem sendo tratado pelo Poder Judiciário. Em julho de 2019, o
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reformou a sentença de improcedência
prolatada nos autos do Processo 0199933-54.2008.8.19.0038. No caso concreto a
parte autora buscava ser indenizada por haver sido acometida de uma infecção
bacteriana contraída nas dependências do hospital réu.
O laudo pericial destacou que, na ocasião, alguns estados
da federação (inclusive o Rio de Janeiro), passavam por um surto epidêmico de
micobacteriose, com inúmeros casos notificados às secretarias de saúde. Mais ainda:
as respostas aos quesitos formulados pelo hospital deram conta de que os
métodos de esterilização adotados pela instituição seguiram os padrões exigidos
pela Anvisa e que o hospital comunicou, devidamente, o caso da autora às
autoridades competentes.
Muito embora o magistrado de primeira instância tenha
julgado improcedentes os pedidos da parte autora, a decisão terminativa foi
reformada, sob o argumento de que a infecção hospitalar deveria ser analisada
sob a ótica da responsabilidade objetiva, tratando-se de fortuito interno sem
condão de afastar a responsabilidade civil do Hospital.
O julgamento desta apelação reflete outro julgado, não tão
recente assim, em que o acórdão ressalvava a irrelevante perquirição de conduta
culposa pelo hospital, diante de infecção hospitalar por microbactéria, para
condenar o nosocômio com base exclusivamente na verificação do evento danoso
(Apelação 11070-44.2007.8.19.0202).
Na Apelação 1048240-09.2014.8.26.0100, o TJ de São Paulo
reformou a sentença para condenar o hospital e a operadora de plano de saúde,
por uma infecção hospitalar atestada pela perícia. O laudo pericial, contudo,
deixara claro que a infecção hospitalar não significava, necessariamente, falha
no serviço hospitalar, e que no caso concreto tratava-se de intercorrência
inerente ao procedimento ao qual a parte autora se submeteu.
A 7ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP, ao majorar a
condenação, em julgamento da Apelação 0033519-97.2013.8.26.0005, posicionou a
infecção hospitalar como uma circunstância previsível e como risco da atividade
empresarial.
Não obstante o panorama que acima foi demonstrado,
pondere-se que a prestação de serviço médico-hospitalar possui contornos
absolutamente distintos das demais atividades sujeitas à aplicação da
responsabilidade objetiva e da teoria do risco.
Por oportuno, relevantes os ensinamentos de Miguel Kfouri
Neto, para quem a aplicação teoria do risco deve ser repelida nestes casos, na
medida em que “redundaria na imposição do dever de indenizar tão só em face do
dano e da permanência do enfermo no hospital”.
É claro que o conjunto da prestação do serviço hospitalar
é fracionável em atividades que se amoldam à aplicação da responsabilidade
objetiva, mas em se tratando de infeção hospitalar, há que se considerar elementos
outros que influirão na possível responsabilização do nosocômio – a atividade
hospitalar guarda peculiaridade que representa verdadeira reverberação da
atividade médica, que é sabidamente limitada.
Por esta atividade ser limitada é que a obrigação do
médico é de meio. O sucesso da sua atuação depende diretamente de fatores que
vão desde os instrumentos tecnológicos disponíveis na atualidade até as
manifestações orgânicas do(a) paciente.
Novamente relevantes as lições de Miguel Kfouri Neto, ao
citar o mestre José Aguiar Dias, para quem: “A obrigação médica não é
evidentemente obrigação de resultado, o mesmo devendo ser dito da
responsabilidade da instituição hospitalar. Não se exige que assuma o dever de
curar, de remediar todos os males, de vir a responder pela própria vida do
paciente”.
Segundo Matielo ensina, “obrigação de meios é a que
vincula o profissional à aplicação diligente de todos os recursos disponíveis
para a melhor condução possível do caso clínico que será alvo de seus
préstimos”. Ainda acrescenta que “na relação que envolve obrigação de meios o
objeto do contrato é a atuação zelosa e tecnicamente correta do médico,
mantendo-se dentro dos parâmetros apontados pela ciência.”
Do mesmo modo, a aferição da responsabilidade do hospital,
diante da infecção nosocomial, deve considerar os esforços da instituição no
sentido da redução das taxas de infecção hospitalar, portanto.
Quanto a estas taxas, aliás, a Portaria 2.616/1998, em seu
Anexo III, aponta critérios de cálculos de taxas de infecção hospitalar, de
pacientes com infecção hospitalar e de infecções hospitalares por procedimento,
cabendo à CCIH elaborar, periodicamente, relatório com indicadores
epidemiológicos interpretados e analisados, que será divulgado a todos os
serviços e à direção, promovendo o seu debate na comunidade hospitalar.
Em se tratando de números e percentuais, portanto, não há
consenso, na medida em que os índices são levantados hospital a hospital. Em
2013, foi conduzida uma pesquisa sobre infecção hospitalar em pacientes
operados no Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN).
A partir do estudo acima mencionado, que contou com a
monitorização, por protocolo previamente estabelecido, de 3.120 pacientes
operados nas várias clínicas do referido hospital, no período de janeiro de
1999 a outubro de 2002, observou-se taxa de infecção cirúrgica de 5,99%. Os
autores comparam estes resultados com os encontrados por Culver, que ao
monitorar 84.691 pacientes em 44 hospitais americanos, no período de 1987 a
1990, encontrou taxa de infecção cirúrgica global de 3,7%.
Se é possível dizer que não há consenso acerca dos níveis
aceitáveis de infecção hospitalar, também é possível afirmar que há consenso
acerca da impossibilidade de se atingir o “zero”.
A responsabilidade civil, conforme se sabe, apoia-se no
artigo 927, do Código Civil de 2002, e pressupõe a existência do ato ilícito.
Carlos Alberto Bittar ensina que “ato ilícito é o procedimento, comissivo
(ação) ou omissivo (omissão, ou abstenção), desconforme à ordem jurídica, que
causa lesão a outrem, de cunho moral ou patrimonial”. Ensina Carvalho de
Mendonça, também: “Que é ato ilícito? Em sentido restrito, ato ilícito é todo
fato que, não sendo fundado em Direito, cause dano a outrem.”
Sobre esse conceito de fundamental relevância para a
responsabilidade civil, por ser o seu fato gerador, Cristiano Chaves de Farias,
Nelson Rosenvald e Felipe Peixoto Braga Netto apontam que o Código Civil de
2012, em verdade, aperfeiçoou a noção de ato ilícito, constante do artigo 159
do antigo diploma de 1916 — se antes cometia ato ilícito quem violasse direito
ou causasse dano a outrem, atualmente, “a obrigação de indenizar decorre (...)
da existência da violação de direito e do dano, concomitantemente”.
Assim, a doutrina civilista contemporânea considera o ato
ilícito como um fato jurídico, que, por seu turno, consiste em eventos com
potencial de repercutir na esfera jurídica, “produzindo diferentes efeitos”.
Estes efeitos, ensinam Farias, Rosenvald e Netto, devem ser antijurídicos, ou
seja, contrários ao ordenamento jurídico.
Dessa forma, considerando-se que a vontade do legislador
tem como objetivo a redução máxima possível dos índices de infecção hospitalar,
pela implementação de planos e estratégias de prevenção de IRAS, o hospital que
se amolda a todos os requisitos legais, mas, mesmo assim, não consegue evitar a
incidência de infecção hospitalar, não age em desconformidade com o ordenamento
jurídico.
Neste sentido, sóbrio julgado foi prolatado no Processo 0068836-02.2012.8.26.0100,
em ação que tramita na 26ª Vara Cível do Foro Central Cível de São Paulo. No
caso concreto a parte autora alegava que em razão de um procedimento cirúrgico
fora acometida por infecção hospitalar, o que agravara o seu quadro clínico —
tendo sido necessária a indução ao coma e a estadia em internação, por dois
meses, em unidade de tratamento intensivo. Ao final do tratamento, contudo,
teria sido constatado infarto ósseo, o que dava azo a fortes dores no joelho
direito.
O laudo pericial, confeccionado por infectologista,
constatou a ocorrência da infecção hospitalar, afirmando que “a ocorrência de
uma infecção hospitalar não indica, necessariamente, que o hospital ou sua
equipe tenha cometido um erro na assistência prestada ao paciente”. Ainda
concluiu a perita oficial do juízo que “as medidas preventivas atuais não
conseguem evitar todas as Infecções Relacionadas à Assistência a Saúde (IRAS)”.
O que se observa neste caso em específico é, precisamente,
a ponderação necessária em casos que envolvam infecção hospitalar, para que os
dispositivos legislativos nacionais, bem como as normas técnicas de saúde sejam
prestigiados.
Necessária a reflexão, portanto, de que em um cenário de
infecção relacionada a assistência à saúde, comprovado que a instituição
hospitalar cumpriu as normas relacionadas à regulação sanitária, no que toca à
prevenção, fiscalização e controle de IRAS, não há que se falar em dever de
indenizar pela prática de ato contrário ao ordenamento jurídico (ato ilícito),
afastando a teoria do risco, sob pena de serem ignoradas as conclusões técnicas
já alcançadas pelos organismos internacionais e nacionais de saúde, no que toca
a inevitabilidade da infecção hospitalar, em maior ou menor percentual.
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Leandro Siciliano
Neri é advogado.
Abner Brandão
Carvalho é advogado.
Revista Consultor Jurídico